
Manifestação em Estrasburgo, em janeiro de 2013, contra a homofobia. Foto © Claude Truong-Ngoc/WikiCommons
Ao contrário do que temos ouvido afirmar repetidamente, a aceitação da legitimidade moral das relações homoafetivas não é nenhum protesto contra as relações heterossexuais ou contra o casamento tradicional. Quem tal afirma está simplesmente a desviar a atenção do ponto essencial: a urgência da aceitação da homossexualidade como uma das formas com que a sexualidade humana se manifesta, sem exclusões nem restrições indevidas. O caráter dialógico de qualquer relação não se consuma obrigatoriamente na possibilidade procriativa, nem a fecundidade das relações se esgota no mero efeito reprodutivo. Também uma relação entre pessoas do mesmo sexo pode ser dialógica e fecunda.
O ponto de vista da moral oficial da Igreja está fundado na ideia de lei natural (ou ordem natural) – um nebuloso conceito que, em grande medida, a Igreja manipula de acordo com as mais ancestrais conceções ideológicas (algumas delas derivadas de preconceitos milenares). Em vez de fundarmos os nossos juízos morais numa obscura lei moral natural que ninguém sabe exatamente o que seja nem é de todo evidente para a maior parte dos homens e mulheres do começo do século XXI, talvez fosse muito mais consentâneo com a verdade do ser humano fundá-los num princípio tão simples e claro como a afirmação da liberdade individual para todos os comportamentos que não impliquem um prejuízo justificado para nós próprios ou para os outros. Talvez assim nos desembaraçássemos de tanto moralismo puritano que igrejas e comunidades mais conservadores tendem a impor aos seus membros, como autênticos fardos insuportáveis que muitos carregam pela vida pondo em causa o seu bem-estar psíquico e o direito de todo o ser humano a procurar a felicidade.
A própria existência, entre a comunidade humana (e não só), da diversidade de orientações sexuais é um claro sinal de que a “natureza humana” está nela implicada. O ser humano concreto não é um bloco monolítico com uma de duas identidades e apenas uma orientação sexual: é uma realidade complexa que em muito ultrapassa as nossas restrições clássicas, culturalmente determinadas. E do ponto de vista teológico, tal diversidade não corresponderá também à vontade de Deus? É certo que nem tudo o que deriva da natureza pode ser necessariamente atribuído à vontade divina, pelo menos atendendo à maneira como o cristianismo a interpreta. É exemplo disso a deficiência física ou psíquica com que alguém nasce e que é impeditiva da sua realização plena. Mas a homossexualidade não é de todo assimilável a uma deficiência, em contraposição, portanto, à vontade divina. Não só não há motivos sólidos para ser assim interpretada, como temos motivos para crer exatamente no contrário. De facto, desta orientação não deriva necessariamente a impossibilidade de realização humana, nem dela decorre nenhum prejuízo para os outros ou para a comunidade. Ser homossexual não afeta negativamente a vida dos demais membros da comunidade humana e cristã e, se vivida com responsabilidade, não acarreta qualquer impedimento à realização pessoal, nem à sua relação com os demais.
Uma outra questão que tem ensombrado os juízos morais das religiões, bem como de algumas filosofias, é a injustificada suspeição em relação à legitimidade do prazer sexual. Do ponto de vista do Catecismo da Igreja Católica, o prazer sexual só é aceitável quando direcionado para a união amorosa e simultaneamente para a procriação (§ 2351). Mais uma vez teremos de nos questionar sobre a validade de um tal juízo. Por que razão a legitimidade do prazer depende do fim procriativo do ato sexual? Onde é que semelhante afirmação é evidente? Por qual razão o prazer não poderá ser procurado por si mesmo, para fruição do indivíduo, quando daí não advenha nenhum prejuízo para outrem? Não se vislumbra nenhuma razão para adotarmos uma visão tão restritiva da atividade sexual humana. Bem pelo contrário, a realidade diz-nos que os seres humanos usam a sua sexualidade também para autossatisfação, prazer pessoal e busca de bem-estar psicofísico global. Qualquer afirmação em contrário tem de ser claramente explicada e justificada, uma vez que a realidade do comportamento humano contradiz uma tal limitação doutrinal.
O momento atual da história da Igreja Católica é crucial. Estamos num bívio que nos convoca para a tomada de decisões a respeito do futuro da Igreja. O atual movimento de auscultação global das bases da Igreja, posto em marcha pelo Papa Francisco, é uma oportunidade imperdível para manifestarmos as nossas convicções e influenciarmos a maneira como a Igreja se vai reorganizar, tanto do ponto de vista prático como teórico. A alternativa à reforma será uma Igreja que, apesar de manter as suas instituições, estará mortalmente ferida pela insignificância a que ela própria se condena no panorama do mundo em que vive. Na verdade, não é o “mundo” que condena a Igreja a viver num gueto sem significado global, é ela própria, se não estiver à altura do tempo e do Evangelho que diz querer proclamar. Quererá a Igreja ser responsável pela recusa generalizada da proposta cristã centrada em Jesus de Nazaré?
No que me toca, sonho com uma Igreja que não tenha medo de perscrutar os sinais dos tempos, permitindo que, através deles, se revele a novidade que o Espírito faz nascer no coração da história. Sonho com uma Igreja que não viva entrincheirada no conforto das suas certezas, dos seus cânones, das suas leis, mas que permita a irrupção do Espírito na sua história concreta, esse Espírito que faz novas todas as coisas. Uma Igreja que não receie o diálogo sincero e aberto com a cultura contemporânea, não caia na tentação de se colocar fora do mundo ou numa posição antagónica em relação à cultura atual, como se o Espírito se revelasse apenas nas suas estruturas e não onde quer, como quer e através de quem achar por bem. Não, a Igreja não é a detentora da verdade absoluta. Esta é prerrogativa exclusiva de Deus. A Igreja vive no mundo, caminha nele e é com ele que tem de prosseguir viagem, não para aceitar tudo quanto a cultura dominante propõe, mas para discernir sem antagonismos estéreis, com base no Evangelho e não em preconceitos milenares, entre o que é bom e o que deve ser rejeitado. Sonho, portanto, com uma Igreja aberta à novidade, a uma leitura não hostil da história atual, à irrupção transformadora de Deus por meio dos mais inesperados sinais. Sem esta disponibilidade, julgo que tenderá a transformar-se num “cadáver adiado”, condenando o Evangelho a letra morta.
Jorge Paulo é católico e professor do ensino básico e secundário; um primeiro texto sobre este tema pode ser lido nesta ligação.