
Imagem do filme Os Irmãos de Leila, de Saed Roustayi.
O cinema é uma arte maravilhosa porque nos transporta e faz entrar e conhecer, por exemplo, outras culturas. E da maneira mais verdadeira, quando é bom. É o caso do filme iraniano Os Irmãos de Leila, de Saed Roustayi.
As primeiras imagens podem ser enganadoras. Numa montagem em paralelo – havemos de lembrar-nos muito do filme O Padrinho, de Coppola, e não apenas por esta razão – são-nos logo apresentadas as três personagens fundamentais que farão avançar o longo filme de família: o pai, que aparece sentado a fumar, com ar de profeta e de quem não faz nada; Alireza, um dos irmãos de Leila, que deixa a imagem de um cobarde que foge, como lhe diz um dos seus colegas da fábrica; e Leila, de quem vemos a cara numa sessão de fisioterapia.
E digo que as imagens podem ser enganadoras porque, no centro do filme, para lá de ser (mais um) retrato da difícil situação económica e social vivida no Irão, está sobretudo o retrato de uma família, com os seus segredos e mentiras, as suas ambições, as suas tentações, os seus dramas, as suas tradições atávicas. E o insolúvel drama da falta de dinheiro.
E é Leila quem mais quer e mais luta para sair dessa espiral da miséria, ela que é a única a ter um trabalho estável e bem remunerado, que sempre viveu em casa e que não se conforma. Por isso vai tentar tudo para fazer a família sair dessa situação. Quando Alireza, depois de ser despedido (dispensado, como ele faz questão de dizer), chega a casa, ela tenta ganhá-lo para a sua causa, para depois ir envolvendo os outros três irmãos. A saída que ela vê é a compra de uma loja no centro comercial onde trabalha, frequentado por pessoas endinheiradas. Uma loja que, aliás, ainda nem existe. Resultará da transformação das casas de banho (este será um lugar importante, tocado pela ironia, no decorrer do filme). Mas não vai ser uma tarefa fácil. Todos estão demasiado acomodados, muito condicionados e com pouca vontade de lutar.
Mas há um problema ainda maior e mais difícil de ultrapassar, naquela sociedade e naquela família tão patriarcal e machista: o pai e a sua obsessão de vir a ser nomeado patriarca do clã familiar (e voltamos ao Padrinho, de Coppola). Para isso, ele vai ter de ser aquele que dá a prenda maior: têm de ser 40 moedas de ouro. É sobretudo aqui que se joga e que está o interesse do filme: obedecer ao pai e aceitar essa sua ambição, mesmo que ele não se dê conta de que está apenas a ser usado pela ambição dos outros, ou arranjar maneira de ficar com as 40 moedas e com elas comprar o tal lugar da futura loja e abrir um negócio salvador? Vale a pena assistir a esta tensão entre a ambição do pai e a necessidade da família, protagonizada pela decidida, inteligente, inconformada e pragmática Leila. Até Alireza vai deixar de hesitar e assumir a sua missão. Vale a pena assistir à luta de Leila contra os atavismos de uma sociedade tradicional e patriarcal e ao dilema moral que essa luta inevitavelmente lhe traz a si e aos irmãos. Uma guerra da ‘reflexão contra as convicções’, como ela diz num dos muitos belos diálogos do filme.
“Os filhos estão a roubar os pais, ou a impedir que os pais os roubem?”, perguntava Luís Miguel Oliveira, na sua crítica (Ípsilon, Público, 9 de Dezembro de 2022).
A verdade é que a possibilidade de saída de toda aquela situação só poderá acontecer depois da morte do pai. Talvez seja esse o sentido do final do filme, já depois de milhentas peripécias.
“Filme indispensável para quem gosta de cinema e de projectos que nos ajudem a compreender os meandros mais intrincados da natureza humana.” (in MHD, Magazine Hd)
Os Irmãos de Leila, de Saed Roustayi.
Título original: Baradaran-e-Leila
Drama, 165 min., M/12
Irão, 2022
Manuel Mendes é padre católico e pároco de Esmoriz (Ovar). Este texto foi publicado originalmente no número de Janeiro 2023 na revista Mensageiro de Santo António.