
Medo em Auschwitz-Birkenau – Jun-Jul 1943, de Karl Stojka
27 de janeiro, a data em que o Exército Vermelho libertou Auschwitz, tornou-se o dia internacional em memória das vítimas do nazismo: judeus, ciganos, testemunhas de Jeová, homossexuais, e tantos outros.
Hoje quero lembrar Karl Stojka, e o seu aviso:
“Não foi Hitler, nem Göring, nem Goebels, nem Himmler, nem nenhum desses quem me arrastou e espancou. Não. Foi o sapateiro, o vizinho, o leiteiro. E depois receberam um uniforme, uma braçadeira e um barrete, e passaram a ser a raça superior.”
Karl Stojka nasceu em 1931 em Viena, numa família católica lovari — um subgrupo da etnia cigana, sobretudo conhecidos como comerciantes de cavalos. O sistema nazi odiava os povos ciganos, e ainda mais os grupos itinerantes como a família de Karl. Acusavam-nos de serem associais e preguiçosos, diziam que não se integravam e viviam do trabalho dos outros. Um ódio muito conveniente, porque permitia unir a população contra um inimigo exterior.
Quando Karl tinha dez anos, os nazis levaram o pai dele para Dachau. Assassinaram-no alguns meses depois. Aos onze anos, Karl foi enviado com a família para Auschwitz, onde lhe trocaram o nome pelo número Z5742 (“Z” de Zigeuner, cigano) e acabaram por matar grande parte dos seus.
Ele conseguiu sobreviver ao Porajmos.
Muitos anos depois começou a pintar as dolorosas memórias do campo – como esta imagem que partilho, com o título “medo”. Assinava as suas pinturas com o nome e com o número que lhe deram em Auschwitz.
(Mais imagens e informações: aqui e aqui.)
Falamos bastante do que os nazis fizeram aos judeus, e frequentemente ignoramos as outras vítimas. O resultado é que estamos mais sensíveis aos discursos antissemitas, mas nem reparamos quando hoje em dia políticos (ou amigos nossos) falam sobre os ciganos nos mesmos exactos termos em que os nazis o faziam há oitenta anos. Ouçamos ao menos o aviso de Karl Stojka: não foi Hitler quem o maltratou, foram os seus vizinhos, o leiteiro, o sapateiro. Pessoas banais, integradas na sociedade, inteiramente convencidas que eram pessoas de bem.
No livro “SS”, Guido Knopp avisa:
“A moral da história? Qualquer pessoa poderia ter-se tornado um agressor. Quando um Estado criminoso destrói as barreiras entre o certo e o errado, qualquer pessoa fica em situação de risco. A natureza humana por si só é vulnerável. Em cada um de nós há um Himmler e um Mengele, um Eichmann e um Heydrich.
Noutros tempos e sob outras circunstâncias, todos estes homens teriam tido “vidas normais”, teriam sido cidadãos que não davam nas vistas.”
Hoje passei no Gleis 17 [Cais 17] — um dos memoriais que lembra as deportações dos judeus de Berlim. Tinha uma flor em cima de todas as placas que assinalam os comboios que partiram desta cidade em direcção aos campos de concentração. Para essas vítimas, pouco mais podemos fazer que pousar flores em placas frias. Mas para os nossos irmãos judeus, os nossos irmãos ciganos, os nossos irmãos refugiados, e todos os que hoje são vítimas do discurso e da ideologia nazi recuperados ao gosto do nosso tempo: não podemos assistir de braços cruzados. Há muito trabalho a fazer.
Para que os nossos netos não nos perguntem depois como foi possível termos deixado acontecer.

Obra de Karl Stojka
Helena Araújo vive em Berlim e é autora do blog Dois Dedos de Conversa, onde este texto foi inicialmente publicado.