
“As Igrejas têm, portanto, de reequacionar a forma como têm interpretado a sua essência e a sua função na história da humanidade.” Foto © Antenna | Unsplash
As religiões têm mostrado grande dificuldade em aceitar a condição livre do ser humano. A liberdade foi amiúde encarada como o caminho aberto para o desastre da humanidade. Do ponto de vista do cristianismo, o raciocínio das autoridades tem sido claro: se a verdade se revelou definitivamente em Jesus Cristo e se a Igreja é a herdeira desse património indiscutível, qualquer afirmação de liberdade em relação à doutrina e prática da Igreja será também entendido como um atentado à verdade. A liberdade será, assim, o caminho da perdição humana. Não admira, pois, que o advento da modernidade e a sua concomitante defesa da liberdade individual tenham sido claramente recusadas e combatidas pela Igreja. O Syllabus (o anexo à encíclica de Pio IX, de 8 de dezembro de 1864, que apresenta os principais “erros” da modernidade) é exemplo claro da luta da Igreja contra a liberdade individual, incluindo a liberdade de opinião e de religião.
Não admira que assim seja, pois em muitos aspetos a Igreja Católica tem funcionado institucionalmente como uma organização autocrática. Todos as organizações totalitárias, sejam elas de caráter político ou religioso, odeiam e perseguem a liberdade individual, que é interpretada como um fator de desagregação social e de afastamento da verdade.
O problema destas conceções que tendem a negar o valor da liberdade individual é considerarem que a verdade foi dada e compreendida uma vez por todas e que nada precisamos de fazer para a conquistar. Resta-nos obedecer às autoridades que no-la “propõem”, como um dado acabado e pronto a consumir. Nada mais falso do que semelhante conceção! A fronteira da verdade, enquanto sistema completo, está sempre para lá das nossas apreensões. Ao vislumbrarmos um pouco do seu rosto, através de novas descobertas e novos desenvolvimentos, abrimos também espaço para novas questões e novos problemas que implicam também o afastamento da sua compreensão total.
O ser humano, pela natureza finita da sua razão, jamais conhecerá a verdade total. A vida humana pode conceber-se como um caminho cheio de escolhos em direção à verdade. Por isso, nenhum ser humano e nenhuma instituição se podem arrogar o direito a trazer a verdade na sua sacola, completa e acabada como um mero artefacto humano. Por mais sagrada que seja uma instituição, ela caminha humildemente por entre dificuldades de todo o tipo em direção à verdade absoluta que não possui. E nem sequer pode possuir, porque a verdade absoluta é Deus, aquele que está para lá de toda a compreensão humana.
A liberdade é então inteiramente necessária neste processo de procura quotidiana da verdade relativa, circunstancial, seja ela científica, religiosa, espiritual, existencial ou qualquer outra. Nenhum ser humano se pode arrogar o direito a ter acesso privilegiado à verdade total. Em vez disso, no jogo de todas as liberdades, ser-nos-á dado chegar mais longe no encontro com a verdade relativa. Em sentido inverso, se coartarmos o nobre exercício da liberdade, teremos muito menos probabilidade de desvendarmos um pouco mais o rosto da verdade. A liberdade não é, portanto, o falso caminho que nos há de conduzir a uma vida inautêntica, privada da verdade. É, pelo contrário, a condição de possibilidade de encontro com a verdade, esse grande enigma que todos os dias reclama do ser humano um trabalho contínuo.
As religiões, enquanto se consideram guardiãs da verdade, tendem a conviver mal com a afirmação da liberdade individual. Nas suas fileiras, coartam-na, limitam-na, enquanto apelam permanentemente à obediência férrea a uma autoridade que se considera incontestável, porque garante da verdade. É esta sobranceria institucional – inteiramente equivocada – que tem de ser alterada. Nenhuma religião é ou sequer possui a verdade. Uma religião é uma aproximação à verdade intangível que só Deus é. E, enquanto aproximação, é também um caminho perpétuo sempre inacabado de reinterpretação da vida.

Em todas as épocas devem as religiões estar dispostas a reinterpretar os seus textos sagrados, a sua doutrina e as suas práticas, porque nenhuma formulação é ainda irreformável e nenhuma prática pode ser definitiva. É esta circunstância efémera que nos separa do “Reino de Deus” enquanto realidade escatológica, onde Deus será “tudo em todos”. Esta é a condição histórica do ser humano e a sua aceitação requer humildade e apego ao caminho incessante de busca da verdade, o que exige de nós esforço e tolerância em relação ao trabalho igualmente meritório dos outros, quer estejam de acordo connosco quer nos confrontem com posições que se opõem às nossas.
As Igrejas têm, portanto, de reequacionar a forma como têm interpretado a sua essência e a sua função na história da humanidade. Isso requer a remoção de todas as coações ilegítimas da liberdade individual e a reinterpretação do estatuto das suas doutrinas, abdicando de todo o dogmatismo. Inquisições, acusações de heresia, condenações, expulsões, limitação da liberdade de emitir opiniões e de investigar, recusa de contraditório, etc. são tudo negações da condição livre do ser humano, marcadas pelo desrespeito da sua dignidade e, no fundo, pela ideia de que a verdade reside num “depósito” a que uma determinada entidade tem acesso privilegiado, como se esse “depósito” não tivesse, ele próprio, de ser sempre sujeito a novas e mais adequadas interpretações, porque nada do que seja humano pode ser encarado como definitivo.
Sobretudo, sempre me chocou a perseguição cruel que a Igreja moveu até há bem pouco tempo a quem dedica a sua vida à investigação teológica. Haverá lugar mais propício à liberdade de opinião e de investigação que uma universidade? Se numa faculdade de teologia não for permitido desenvolver o pensamento crítico, onde poderá sê-lo? Infelizmente, o medo da novidade, o entendimento de que uma nova conceção teológica pode abalar os fundamentos do poder e, sobretudo, a conceção a-histórica da doutrina e prática religiosas, como se a verdade conhecida não fosse relativa, têm conduzido a processos persecutórios de teólogos que ousam pensar para lá dos limites da estrita ortodoxia. Mas um poder instituído que estivesse realmente seguro da sua condição humanamente limitada, não deveria ter medo do contraditório nem da investigação científica no campo teológico. Na verdade, qualquer cientista sabe que não há ciência sem liberdade. Uma ciência controlada por ideologias religiosas ou políticas dogmáticas não tem condições para se desenvolver e acaba por definhar. Assim acontece também no plano da teologia, onde a liberdade é essencial para perseguir a verdade que se mostra apenas parcialmente como prémio para quem a ama e não desiste de a procurar humilde e permanentemente.
Jorge Paulo é católico e professor do ensino básico e secundário.