Liberdade, igualdade, paternidade
Tal possibilidade está já reconhecida na legislação portuguesa desde 2016 (a Lei n.º 17/2016, de 20 de junho, que alterou a Lei n.º 32/2006, de 26 de julho), uma alteração aprovada numa indiferença quase geral e sem que, por cá, tenha ocorrido a viva discussão que a questão vem suscitando em França desde há mais de um ano (com a realização de Estados Gerais da Bioética).
Anuncia-se agora uma nova proposta (do Partido Socialista) de alteração da legislação portuguesa que, motivada por um caso real noticiado, virá permitir a inseminação post mortem, isto é, a inseminação com sémen do marido ou companheiro falecidos (hoje vedada pelo artigo 22.º da referida Lei n.º 32/2006, que não veda, porém, a transferência post mortem de embriões). Argumenta-se em favor dessa admissibilidade que, estando já iniciado o processo no momento da morte do pai, não será justo vedar essa inseminação quando nenhum obstáculo haveria se estivéssemos perante o recurso à procriação artificial por uma mulher com um dador de sémen anónimo. Encarada a questão nesta perspetiva, seria aceitável esta argumentação.
Mas a questão fulcral é outra.
O filho deve ser aceite como um dom, e não reivindicado como objeto de um direito. Deve ser fruto de uma relação de amor e comunhão, da unidade na diversidade de dois progenitores (e aí radica, desde logo, a sua alteridade em relação a cada um destes), não de uma afirmação individual, como espelho ou prolongamento de um progenitor (também por isso, é inaceitável a clonagem). O seu bem deve prevalecer sobre qualquer desejo (por muito legítimo e compreensível que este seja), de um ou de ambos os progenitores. De outro modo, não será querido por si mesmo, um fim em si mesmo, e estará a ser instrumentalizado.
E esse bem do filho reclama a presença de uma mãe e de um pai ao longo de todo o seu crescimento, não se compadece com alguma forma de orfandade pré-determinada. Que a privação do pai ocorra com frequência de forma involuntária, e muitas mães a consigam suprir com muita dedicação e sacrifício, não significa que seja esse o dever ser, ou o melhor para o filho, que se deva aceitar essa privação de forma programada e intencional.
A propósito da discussão ainda em curso em França, salientaram os bispos franceses (no seu documento de 2018 La dignité de la procréation, cujo resumo é acessível em www.eglise-catholique.fr) que o “interesse superior da criança” exige uma referência paternal e que a eliminação dessa referência suscita problemas de ordem antropológica e social, contribuindo para o enfraquecimento da consciência social das responsabilidades do pai e favorecendo uma imagem distorcida do pai como simples fornecedor de material genético, equiparando a procriação humana a alguma forma de produção.
Foram estas considerações que justificaram o regime legal português de recurso à procriação artificial na sua versão inicial, então reservada a casais inférteis, tal como a proibição da inseminação post mortem, ainda hoje vigente. Parece que todas essas considerações estão hoje esquecidas. Mas não deveriam estar.
Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, da Igreja Católica