
Imagem de arte de rua da filósofa Simone Weil, Berlín Kreuzberg (2019)
A etapa anterior da minha decantação espiritual terminou num trio de perguntas suspensas, e com o palpite de que há muitas mulheres em posições de liderança na Igreja.
Além disso, andarão por aí muitas visionárias espirituais e serão, umas e outras, reconhecidas e elogiadas. No entanto, a irritação e a insatisfação persistem e é esse o ponto de partida deste troço.
Uma nota de passagem: escrevo a partir da minha experiência de católica lisboeta, que não posso generalizar ao resto do país, nem ao resto da Igreja. Sei também os riscos associados de escrever a partir da experiência e da memória: estas são falíveis e subjectivas, mas isso não as invalida um milímetro. Adiante.
Ouvi várias vezes cantar a nossa audácia, a capacidade de tomar decisões, a visão e perspicácia, o sentido de justiça e a fortaleza, a liberdade interior. Testemunhei tantos agradecimentos pela nossa criatividade, imaginação, ambição e pulso, a dinâmica vida interior, atenção ao pormenor e a argúcia, a temperança, e a prudência. Sei que esperam de nós a liderança desassombrada, uma voz clara e forte, a abertura à novidade e ao risco, uma bem-formada vontade e uma espiritualidade própria. Que sejamos desavergonhada e descaradamente quem somos.
Isto é, claro, o que eu gostava de ter ouvido. Um rápido exercício de memória – selectivo e afectivo, como todos – devolve-me outras respostas.
Testemunhei muitos elogios, sim. Ouvi também alguns e envergonho-me de ter agradecido uns quantos. Elogios ao serviço desmesurado – “tão boa pessoa, sempre disponível, e sem pedir nada em troca” – ao desvelo, ao esquecimento de si, à abnegação tóxica, ao fazer direitinho-perfeitinho. “Incrível! Não sei o que faríamos sem ela! Super dedicada.” Por vezes, à aceitação silenciosa do indizível, em nome de nem Deus sabe o quê. Vi muitas serem apreciadas pela ausência absoluta de limites – “nunca diz que não aos outros, e tem uma vida tão difícil, é mesmo uma santa.” Marcar pontos de santidade ao banir a palavra “não” do vocabulário. E o pronome pessoal “eu”. E o verbo “querer”.
São memórias atravessadas por tantas cores, carregadas de sotaques vários e o que, à época, parecia decorrer da natureza das coisas, ressurge hoje como o cultivar discreto e persistente do auto-abandono, e na supressão orgulhosa de toda e qualquer necessidade. Prover tudo. Cuidar de tudo. Esgotar-se. Cultivar os nossos dons, não como expressão de quem somos, mas para os outros, para ajudar os outros. Porque somos as responsáveis últimas por essa mole desgovernada de inimputáveis funcionais, “os outros”. Tudo plácido, tudo tranquilo, desde que não precisemos de nada. Deus nos livre da tentação da humanidade.
De uma forma tão difusa quanto entranhada, sinto que o que se cultiva na Igreja em Portugal (talvez em Portugal no geral?) não anda ainda longe disto. Se assim é, a única resposta é um visceral e assertivo “Não quero, muito obrigada.”
Estou em óptima companhia. Graças a Deus e às próprias, a história da Igreja está cheia de mulheres impertinentes, algumas com o péssimo hábito de acabar nos altares. Prometeram-nos a vida em abundância, só isso. Não é pedir demais, não é sequer pedir muito.
Uma paragem para aclarar as ideias: não creio que o contributo das mulheres para a vida da Igreja seja ignorado. Creio que não lhe atribuímos o valor espiritual que tem, e que a voz das mulheres não tem o peso e a autoridade que poderiam ter.
Ou melhor, tê-los-á. Só que parecem ser fundados num conceito distorcido de “ser para os outros” e legitimados por uma ideia de serviço obsoleta, e não nas características que cada uma de nós, de facto, traz para a construção do Reino. Não admira que tenhamos, inteligentemente, transformado o serviço e o cuidado em formas subtis (por vezes, tóxicas) de exercício do poder.
Afinal, o que me irrita é simples. Por um lado, verificar que, tendencialmente, valemos pelo que fazemos pelos outros, não por quem somos e não conseguir ver qualquer vestígio dessa forma de estar nos textos bíblicos. E, por outro, o confronto entre o louvor da liberdade que me foi recordado pela homilia da Vigília Pascal, aqui na Alsácia, e a apologia da diluição de si que recordo dos tempos de Lisboa roça a dissonância cognitiva.
Muitas mulheres estarão confortáveis e satisfeitas com a sua Igreja, outras não querem ser questionadas, e muitas não se revêem no que escrevo. Mas sei, também, que esta percepção de submissão e servilismo afastou muitas mulheres da Igreja, e esse afastamento não pode ser invalidado com os clássicos “quem está mal que se mude”, “mulheres de pouca fé” e “quando, de facto perceberem bem as coisas, aceitarão que assim é que está bem”. Como se valesse tudo, menos questionar quem está confortável. Não é uma atitude comunal ou “comunional”, mas uma atitude profundamente colectivista.
Talvez o problema seja mais cultural ou social do que religioso, ou talvez seja apenas mais uma manifestação da implosão da modernidade (que já tarda), e agradeço – de coração – todas as pistas que puderem ajudar a chegar a alguma conclusão. Ou talvez a causa das coisas não seja assim tão importante.
A decantação terminou. A insatisfação está sedimentada no fundo do meu copo de laboratório. Hei de voltar ao tema para explorar o que ficou à superfície. Por agora, sei qual dos dois caminhos que se me apresentam leva à Ressurreição e à Vida, e não é o do conformismo, mesmo que seja o menos confortável e o mais arriscado. Estou em boa companhia.
Bem-aventuradas as impertinentes, porque nelas renasce a Fé da Igreja.
Marta Saraiva é diplomata, exercendo atualmente funções na Missão de Portugal junto do Conselho da Europa.