A terra é propriedade do Estado e não pode ser vendida ou por qualquer forma alienada, hipotecada ou penhorada (cf. Lei de terras de Moçambique, Lei nº 19/97, de 1 de Outubro, artigo 3).

“Esse carinho era traduzido, simbolicamente, em bens – daquilo que melhor produziam – que ambos permutavam, cada um, na verdade, mostrando o orgulho que tinha em entregar ao outro, para marcar o casamento dos seus filhos.” Foto: Retirada do vídeo “Cultura Moçambicana, Lobolo e Casamento de Martha Machava.
Uma aluna minha faltou ao teste, alegando que tinha acompanhado a sua madrasta a uma cerimónia de lobolo do terreno no qual passariam a viver.
O termo lobolo é uma palavra de origem tsonga e equivale à palavra dote. Lobolar é um neologismo construído a partir da palavra tsonga kulovola, acrescentada da terminação verbal “ar”, da língua portuguesa. Expliquei, num texto meu no 7MARGENS, que lobolo de mulher, em tempos antigos, correspondia à entrega de uma noiva à família do seu noivo, num evento no qual as famílias partilhavam carinho entre si. Esse carinho era traduzido, simbolicamente, em bens – daquilo que melhor produziam – que ambos permutavam, cada um, na verdade, mostrando o orgulho que tinha em entregar ao outro, para marcar o casamento dos seus filhos.
O sentido desse câmbio era vivido de modo equivalente. Nessas cerimónias, a única moeda que era entregue pela família do noivo à família da noiva era uma moeda utilizada para deixar no altar dos defuntos da família da noiva (phahlar, ie, pedir bênçãos aos antepassados, que são os deuses dessa família), informando-os que ela iria sair da casa dos pais, para passar a pertencer a uma outra família, a do noivo. À essa moeda não era dado qualquer valor monetário. Para além dela, entregava-se uma pequena porção de farinha de milho, que simbolizava o alimento que se dava aos antepassados. Então, eram dois os rituais no lobolo: a troca de produtos, simbolizando o dote e o ku phahla, pedindo bênçãos aos antepassados pela saída de um membro da família, a noiva, para a outra família.
Com o andar do tempo, nos dias que correm o lobolo passou a ter outras características. Ganhou um sentido de gratificação ou compensação e até mesmo de propina. A transferência de uma moça-noiva para a família do noivo, tem sido marcada por uma troca desigual, na qual a família do noivo passa elevados valores monetários e outros bens materiais à família da sua noiva e esta última disponibiliza a sua filha. O sentido do dote sentimental deixou de ter o significado original. Aquela marca de início de convivência entre famílias, celebrada a partir de uma troca de prendas é a que eu conhecia, até ser surpreendida pela minha aluna, ao afirmar haver também um ritual equivalente, quando se trata de conferir posse de terras a outrem.
Tive de procurar quem me explicasse as outras variantes daquilo a que ela designou de lobolo. Nisto de troca e de compra há muito que se lhe diga. Tal como se pode ler na “Lei de terras” acima citada, não se vende nem se compra terra. Ela é um bem do Estado, do qual todos os cidadãos moçambicanos, desde que adquiram os documentos oficiais necessários, podem dela usufruir. Além de pertença do Estado, a terra já em utilização antiga, por parte de um nativo, pertence-lhe, mas não deve ser vendida, pelas razões já apontadas.
Entretanto, tem se assistido à transação de terras do Estado ou de nativos, com recurso ao pagamento de uma propina, a que chamam lobolo. Quer dizer que, para ceder o direito de utilização de uma porção de terra, alguns nativos recorrem a rituais que designam de tradicionais; daí a ideia de “lobolar o terreno”, ou seja, para que o novo dono passe a ter posse do seu novo terreno, ele deverá lobolá-lo ao seu dono. Depois de o lobolar é que pode receber uma “Declaração do bairro”, documento que atesta a “propriedade” da porção de terra, para que, posteriormente, passe a ter o direito de uso e aproveitamento da terra, o DUAT, documento passado pelas autoridades.
Na cerimónia de “lobolo de terreno”, o seu “proprietário”, acompanhado pelo chefe do quarteirão da região na qual vive (este último, responsável municipal-oficial por um determinado número de casas num município) e de sua esposa, mais o candidato a proprietário da porção de terra em questão, pede ao candidato a “proprietário” a cedência do seu terreno e uma determinada quantidade de bens, cujas listas variam de lugar para lugar. Dessa lista de bens, parte fica para o proprietário da porção de terra e outra parte para o chefe do quarteirão. Há ainda uma terceira porção, que se diz ser utilizada para phahlar.
Li uma lista, elaborada em 1991, que incluía a entrega de duas galinhas cafreais, um garrafão de vinho, seis cervejas, alguns refrigerantes, um quilograma de farinha de milho, dois cubinhos de caldos para preparar uma das galinhas e duzentos meticais em dinheiro. Uma outra lista, elaborada em 2020, distinguia os produtos para phalhar dos produtos para se obter uma “Declaração do Bairro”. Para a primeira parte da cerimónia pedia-se: duas galinhas, seis litros de vinho, cinco quilogramas de farinha, quatro litros de refrigerantes e mil e quinhentos meticais em dinheiro. Para a segunda parte, a que corresponde à passagem da “Declaração do Bairro”, pedia-se: cinco litros de vinho tinto, um litro de vinho branco, quatro galinhas cafreais, quatro quilogramas de farinha de milho, uma embalagem de refrigerantes, uma caixa de cervejas e quatro mil meticais em dinheiro.
A partir da explicação sobre em que é que consistia o lobolo na sua etimologia inicial, cujos artigos de troca eram uma moeda e uma porção de farinha de milho, observando as duas listas do que se pressupõe ser necessário para se ter uma “Declaração do Bairro”, constata-se que o sentido de posse ganhou uma apreciação económica; daí que seja importante distinguir lobolo de propina, por não serem equivalentes. Entretanto, é preciso lembrar que a linha que os separa é ténue, por ser caracterizada pela ideia de gratificação ou de compensação.
Faço essa afirmação baseada no facto de que, antigamente, as propinas também podiam ser pagas com recurso à entrega de pessoas. Contou-me um ancião que a sua avó lhe tinha explicado que um familiar seu tinha cometido adultério com uma mulher. O esposo desta mulher teve que ser compensado pela recepção da irmã do adúltero na sua família, isto é, o indivíduo A cometeu adultério com a senhora B; então, o marido da senhora B tinha que ser compensado recebendo a irmã do indivíduo A em sua casa e como compensação pelo sucedido.
Esta história recordou-me uma outra que, não sendo sobre adultério, consistia numa compensação pela passagem de uma pessoa para uma determinada família. Refiro-me a um senhor, natural e residente de Inhambane que, tendo chegado à idade de se casar, foi “pedir a mão” da minha avó em casamento (quando esta ainda era moça). A “mão” da minha avó foi “entregue” pela sua família. Entretanto, o senhor pediu para, por uns tempos, ir à capital do país, Maputo, para trabalhar e juntar dinheiro para se casar. Foi-lhe permitido. No entanto, durante essa ausência, a minha avó enamorou-se e casou-se com um outro moço. No regresso do namorado ao qual a sua “mão” já tinha sido “entregue”, foi lhe passada a irmã da minha avó, como compensação da falha na promessa ou falha no compromisso anteriormente assumido.
O que se pode deduzir de tudo o que apontei sobre diferentes processos de troca, é que a ideia de pagamento de promessas ou de compensação por faltas, com recurso a pessoas como moeda de troca é que indicia a coisificação de pessoas e a ideia do pagamento de propinas. E parece estar ligada a isso a tentativa de deturpar a origem do significado do lobolo, na primeira acepção do termo que expliquei neste texto.
A cultura e as suas tradições mudam. São dinâmicas. Mas será que equiparar rituais ligados a pessoas com rituais ligados a coisas, ou seja, “lobolar uma mulher” e “lobolar um terreno” significa a mesma coisa? Tem o mesmo valor sentimental e económico? Compensar com recurso a pessoas e compensar com recurso a coisas será a mesma coisa? Serão actos equivalentes? Julgo tratar-se de fenómenos que merecem um tratamento diferente. E era importante que, entre nós, se esclarecesse melhor o sentido de posse e de troca. O verdadeiro lobolo era marca de troca equivalente (com valor sentimental entre as famílias) e não de usurpação ou de venda ilícita de um bem do Estado, como no caso da venda de porção de terra.
Sara Jona Laisse é docente de Técnicas de Expressão e Comunicação na Universidade Católica de Moçambique e membro do Graal-Moçambique. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.