
“Vivemos num mundo muito frio, onde o ser humano se tornou menos sagrado”, alertou a presidente cessante da RENATE, irmã Imelda Poole. Foto © Ecclesia / OC.
São “milhões” as vítimas de tráfico humano, e é preciso ajudá-las, protegê-las. Mas a pandemia de covid-19 e o consequente surgimento de “novos tipos de tráfico e exploração” vieram mostrar que há “um trabalho enorme a fazer” em termos de prevenção. Quem o diz é Ivonne van de Kar, que acaba de assumir a presidência da Rede Europeia de Religiosas contra o Tráfico e Exploração (RENATE), e que falou ao 7MARGENS na conclusão da assembleia geral que reuniu em Fátima, de 13 a 18 de novembro, perto de 100 membros daquela organização.
“O nosso grande foco tem de ser na educação, no sentido mais lato da palavra”, afirma a leiga holandesa, de 59 anos, que acompanha as atividades da RENATE desde o seu início, em 2009, e que agora assume a liderança até 2027. “Precisamos de ir às igrejas, às escolas, às associações, empresas… Precisamos de educar particularmente os mais jovens sobre o que é o tráfico humano, para prevenir que venham a ser vítimas de tráfico, mas também evitar que venham a estar do lado dos opressores”, sublinha Ivonne van de Kar.
A nova presidente da RENATE alerta para o facto de o fenómeno do tráfico afetar várias áreas diferentes, desde a exploração sexual à laboral, potenciadas pela “implosão do tráfico online” que ocorreu durante a pandemia. Assim, defende, é preciso “educar todos: crianças, jovens, adultos, professores, polícias, consumidores de comida, consumidores de roupa… Todos, mesmo todos”, reitera.
Pode dizer-se que já muito foi feito, mas muito há ainda por fazer, assinala a irmã Imelda Poole, que assumiu a presidência da rede europeia ao longo dos primeiros 12 anos e que passou agora o testemunho a Ivonne, na assembleia que decorreu em Fátima.
“Quando constituímos a RENATE, apesar de já existir tráfico humano há muitos anos, a verdade é que não se falava muito sobre isso. Hoje, temos parceiros em todo o mundo que lutam contra este flagelo, desde inúmeras ONG ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e à Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE)”, destaca a irmã britânica, de 77 anos, há 17 em missão na Albânia.
“Penso que o mundo está a começar a perceber que uma mudança sistémica é necessária. Por trás do tráfico humano estão a ganância, o lucro, e a procura… Biliões estão a ser conseguidos às custas dos mais pobres e vulneráveis”, afirma Imelda Poole. Ainda assim, “apenas nove por cento do tráfico humano é reconhecido”, alerta. “Vivemos num mundo muito frio, onde o ser humano se tornou menos sagrado.”
“O tráfico humano é o mais fácil de fazer”

As mulheres traficadas não estão presas, não têm correntes, não estão fechadas, mas estão sob ameaça. Foto © Photoboy.
Ana Mendes, diretora técnica da associação O Ninho, que visa a promoção humana e social de mulheres vítimas da prostituição, testemunha esta dessacralização todos os dias. A instituição onde trabalha, e que lida muitas vezes com mulheres traficadas para fins de exploração sexual, foi uma das três que os participantes da assembleia da RENATE tiveram a oportunidade de visitar em Lisboa, no penúltimo dia do encontro, para reforçar a troca de experiências.
“Todas as mulheres com quem trabalhamos são tratadas como objetos, mas as vítimas de tráfico ainda mais”, refere a assistente social. “Identificamo-las, normalmente, porque estão tão perdidas que é notório que foram deixadas ali e não fazem ideia de onde estão… E na maior parte dos casos só as vemos uma vez, porque faz parte da estratégia do tráfico não as manter sempre no mesmo local”, explica.
Esse é um dos motivos que dificulta a ajuda que O Ninho possa prestar a estas mulheres, mas não é o único. “Muitas vezes, elas não querem falar connosco, têm medo… Elas não estão presas, não têm correntes, não estão fechadas. Estão a ser traficadas e estão na rua, mas estão normalmente sob ameaça psicológica, porque sabem que, se falarem com alguém sobre a sua situação, algo de muito mau lhes vai acontecer ou aos seus familiares, nos seus lugares de origem”.
E essa ameaça “é real”, afirma Ana. “Conhecemos o caso de uma mulher que decidiu falar e queimaram a casa da família dela, no país de origem. Porque o tráfico não é feito por pessoas que vão à casa das raparigas e as levam à força. É feito por conhecidos da família, que lhes prometem uma forma de as levar para a Europa. Até há quem diga que o tráfico humano é o mais fácil de fazer, porque as pessoas vêm pelo seu próprio pé”, diz a diretora técnica d’O Ninho.
A abordagem a estas mulheres tem, por isso, de ser feita “com muito cuidado”. “Caso contrário podemos estar a pô-las em risco, só por elas conversarem connosco”, sublinha Ana Mendes. Até porque “é muito complicado desmantelar uma rede de tráfico” e “a justiça muitas vezes não está do lado do sobrevivente ao tráfico humano, mas sim do perpetrador, que é protegido pela lei”, acrescenta a presidente cessante da RENATE.
“Libertar não só a vítima, mas também o opressor”

Eugénia Quaresma, à esquerda, com a equipa da Comissão de Apoio à Vítima de Tráfico de Pessoas (CAVITP), que colaborou na organização desta assembleia em Portugal. Foto: Direitos reservados.
Não restam dúvidas de que é necessário lutar por “uma evolução do sistema legal”, admite a diretora da Obra Católica Portuguesa de Migrações (OCPM), Eugénia Quaresma, que colaborou com a Comissão de Apoio à Vítima de Tráfico de Pessoas (CAVITP) na organização desta assembleia em Portugal. Tendo acompanhado todo o encontro, Eugénia Quaresma crê, no entanto, que “o maior desafio é mesmo o da sensibilização, da consciencialização para o problema”,
A responsável da OCPM sabe que “não basta o trabalho que é feito com as vítimas e a sua recuperação” e considera que é prioritário “trabalhar a mentalidade dos jovens para que não se tornem exploradores”, nem alimentem a procura que leva ao tráfico.
“Se não houver pessoas dispostas a pagar por sexo, a violar crianças, a pagar pouco pelos produtos, a adotar crianças de tenra idade, a ultrapassar a lista de espera dos órgãos…. Se não houver procura, vamos conseguir mitigar e diminuir o tráfico humano”, explica.
E é preciso ir ainda mais além, ou seja, “trabalhar na conversão dos traficantes ou aliciadores”. Trata-se de “outra frente de trabalho desafiante, mas que enquanto Igreja tem de estar no nosso horizonte”, defende. “Temos de libertar não só a vítima, mas também o opressor.”
Ao longo deste dias, Eugénia Quaresma lembrou-se muitas vezes daquilo que diz o Papa. “Uma das coisas mais importantes de participar nesta assembleia foi o perceber que fazemos parte de uma sociedade que explora, e precisamos, de facto, de uma economia nova, que está a ser forjada, a ‘Economia de Francisco’, que não mate, e que ponha a dignidade das pessoas em primeiro lugar”, conta ao 7MARGENS. “Qualquer trabalho que façamos tem de transparecer esta identidade cristã e aquilo que diz a doutrina social da Igreja. Tudo tem de estar fundado no amor, na dignidade e nos direitos humanos.”
O encontro em Fátima foi, segundo a irmã Imelda Poole, perfeito para relançar esse propósito. “Foi uma semana em que, apesar de estarmos fisicamente longe das vitimas de tráfico humano, continuámos muito perto delas… Tantas histórias foram partilhadas, tivemos oportunidade de expressar as nossas emoções, chorámos, os nossos corações foram tocados e aquecidos… A cruz de Jesus esteve aqui, mas foi abraçada”, assegura.
E o Santuário de Fátima, “foi o lugar perfeito” para que o resultado fosse este, sublinha, por seu lado, Ivonne. “Não podemos esquecer que todos os que participaram nesta assembleia pertencem a organizações que têm por base a sua Fé… Foi muito significante para nós termos reunido aqui. Sentimos a presença de Nossa Senhora de Fátima a ajudar-nos.”