Manuela Silva e Sophia
Há coincidências de datas cuja ocorrência nos perturbam e nos sacodem o dia-a-dia do nosso viver. Foram assim os passados dias 6 e 7 do corrente mês de Novembro.
A 6 celebrou-se o centenário do nascimento de Sophia e a 7 completava-se um mês sobre a partida para Deus da Manuela Silva.

Manuela Silva na Fundação Betânia, por ela criada. Foto © Maria do Céu Tostão
À primeira vista são duas efemérides sem qualquer ligação, salvo referirem-se a dois vultos nacionais de indiscutível projecção – ainda que por motivos completamente diferentes – na nossa vida pública na segunda metade do séc. XX e inícios do séc. XXI. Sobre estas efemérides já tudo de essencial foi dito e reflectido, pelo que a ousadia das palavras que se seguem só pode ter desculpa radicada nos sentimentos do autor destas linhas.
Ao percorrer diversos textos comemorativos ou celebrativos do centenário do nascimento de Sophia que admiro profundamente, fui, naturalmente, conduzido à sua obra poética e à sua extraordinária figura humana de poeta. Foi então que a ligação à partida da Manuela aflorou ao meu espírito.
De facto, para aqueles que mais de perto acompanharam a vida humana da Manuela, alguns dos mais conhecidos poemas de Sophia parecem ter sido escritos como uma espécie de guião para essa vida humana. Referindo apenas alguns dos mais conhecidos:
“Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar…
Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror
A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças
D’África e Vietname
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados.
Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado”

“A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta…
Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará”
“Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se comprem e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mão dada com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.”
“Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedores e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
…
Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
…
Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor apaz que vos pedimos…”
“Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quendo vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos …”
“Era um Cristo sem poder
Sem espada e sem riqueza
Seus amigos o negavam
Antes do galo cantar
A polícia o perseguia
Guiada por Fariseus
O poder lavou as mãos daquele sangue inocente
Crucificai-o depressa
Lhe pedia toda a gente
Guiada por Fariseus:”
Do espírito deste conjunto de poemas, e muitos mais haveria no mesmo sentido, se articulou a vida terrena, mais privada ou de cariz mais público, da Manuela. Sempre presente onde a injustiça, a guerra e a fome pedissem a sua acção, a Manuela vivia o seu interior numa atenção sempre voltada para os outros. Não trazia o Deus em si, antes o procurava no mundo, sabendo que o real o mostraria. O poema “Porque”, assim titulado por Sophia, marca um verdadeiro itinerário da Manuela. Meditemo-lo interiormente e encontraremos múltiplos traços de caminhos percorridos desde sempre pela Manuela, não numa crítica aos outros, mas sempre com o seu sorriso característico, simultaneamente, de uma bondade inesgotável. A Manuela era implacável para com o erro e para consigo própria, mas de uma enorme tolerância para com quem errava.
A procura da Paz, de forma muito clara “a paz sem vencedores e sem vencidos”, marcaram toda a sua vida.
Esta pequena evocação do 30º dia da passagem da Manuela para Deus, ficaria truncada no essencial sem recordar o final da homília de frei Bento Domingues, na celebração de 8 de novembro no Convento dos Dominicanos de Lisboa. Dizia frei Bento, na sua linguagem muito peculiar: sobre a vida da figura pessoal e pública da Manuela já tudo foi dito. Não é isso que ela nos pede hoje, mas antes que olhemos o futuro e sejamos capazes de continuar a sua acção.
Mais uma vez um poema de Sophia, “Quando”, nos ajuda nesta tarefa:
“Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.
…
Será o mesmo brilho, a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.”
Que todos nós, seus amigos, saibamos continuar a sua gesta de vida, o mesmo jardim “como se Ela não estivesse morta”.
Lisboa, 10 de Novembro 2019
Fernando Gomes da Silva é engenheiro agrónomo
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