Manuela Silva: uma Grã-Cruz para a luta contra a exclusão

| 8 Mar 20

Em nome do Estado, o Presidente da República condecorou a economista que estudou a pobreza e as desigualdades e propôs o seu combate.

Os irmãos de Manuela Silva (esqª), depois de receber do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a medalha póstuma da Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública, atribuída a Manuela Silva. Foto: Direitos reservados

 

A manhã começara com um registo de indignação. Numa das sessões de debate, alguém na plateia lamentava uma sociedade e uma hierarquia católica portuguesas com pouca capacidade para demonstrar a gratidão. À tarde, Marcelo Rebelo de Sousa responderia, em nome do Estado, no encerramento da evocação que decorreu no ISEG: “O que pode o Presidente da República fazer em nome de todos os portugueses que possa ser um sinal de gratidão, mesmo se tardia, e de incentivo, mesmo se modesto?”. E atribuiu a Manuela Silva, postumamente, a Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública.

A economista já tinha sido agraciada em 2000, pelo Presidente Jorge Sampaio, com a Grã-Cruz do Infante D. Henrique. Mas ocorreu a Marcelo “que poderia entregar à sua família, a toda ela, a do sangue e com ela, a do compromisso diário, um símbolo pequeno para uma mulher tão grande”. Uma irmã recebeu as insígnias, em nome da “grande mulher, grande professora nas ideias e nos atos, grande portuguesa”, uma “mestra que nos instruiu, nos guiou, nos motivou, nos deu o rumo para uma sociedade mais humana, mais livre, mais igualitária e para um Portugal bem melhor”, argumentou o chefe de Estado, reconhecendo embora que “”a homenagem que ela merece vai muito para além” da condecoração outorgada.

Este segundo reconhecimento do Estado português ocorre cinco meses depois da morte de Manuela Silva. Marcelo admite ser tardio. A intenção era que “fosse com a presença física de Manuela Silva”, correspondendo, revela o Presidente, à sugestão que foi recebendo de “muita gente”. Mas a condecoração seria sucessivamente adiada devido, também, ao estado de saúde da economista: “Penitencio-me por me ver resignado a esse adiamento, que acabou por ser irreversível, mas aqui estou eu, convosco, solidário com esta justíssima evocação.”

 

“O muito que lhe devemos”

É “um pequeno símbolo do muito que todos nós, vindos de quadrantes tão diferentes, lhe devemos e nunca iremos esquecer”, justificou o Presidente, descrevendo a homenageada como uma mulher “incansável, indomável, a tudo resistente, intocável na sua coerência e na sua coragem”.

Durante um dos debates matinais da evocação organizada no Instituto Superior de Economia e Gestão, em Lisboa, onde Manuela Silva foi professora, Maria do Rosário Carneiro recordou-a como mulher “ativa e persistente”, que deixou um “legado para o futuro, pela consistência do que fez, com uma fé alicerçada no estudo, vivida em coerência”.

A vida e obra de Manuela Silva não pode ser devidamente contada sem essa história de fé. Para a economista, a cidadania ativa era o evangelho em ação. Numa entrevista publicada em 2004, na revista Faces de Eva (FCSH-UNL), explicava que essa “é a chave de entendimento de tudo, nada é fragmentado, há uma unidade por detrás” do seu percurso, que é “a fé em Jesus Cristo e na Igreja”. Neste sentido, acrescentava, a vida “é sempre de busca, busca de ser, de coerência, de verdade, de maior solidariedade e comunhão com os outros”.

Carlos Farinha Rodrigues, da comissão organizadora da evocação, fala numa “mensagem de amor à vida, aos outros, que permanece”. Luísa Ribeiro Ferreira, da Fundação Betânia e da rede Cuidar da Casa Comum, fundadas por Manuela Silva, considera-a “profeta” do nosso tempo, “ao nível” de Maria de Lourdes Pintasilgo ou Simone Weil, entre outros(as).

Manuela Silva foi secretária de Estado para o Planeamento no I Governo constitucional (1976-77). Uma “inspiração que se perpetua”, defendeu João Cravinho, realçando a “importância dos planeamentos políticos transversais, de médio e longo prazo, sem a preocupação pelo soundbyte do dia”.

O antigo ministro, que teve também a pasta do Planeamento na década de 1990, lembrou Manuela Silva como a economista portuguesa “que mais cedo e persistentemente, na prática e na teoria, lutou por um novo tipo de planeamento” político, que tenha como indicador prioritário o bem-estar das pessoas.

 

“Nada lhe passava despercebido”

Pioneira no estudo das desigualdades e da pobreza, com Alfredo Bruto da Costa, que a sucedeu na presidência da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), da Igreja Católica, Manuela Silva questionava, já nos anos 70 do século XX, os modelos de crescimento. Maria do Rosário Carneiro recorda também a sua “competência e responsabilidade”, capazes de “assustar os mais novos” investigadores que com ela trabalhavam. Era implacável na defesa do rigor.

“Nada lhe passava despercebido, defendia convictamente as suas ideias, mas tinha a preocupação de recolher diferentes opiniões e obter diferentes contributos”, lembra a ex-deputada, que integra a atual CNJP. Para José Leitão, do Centro de Reflexão Cristã, de que Manuela Silva foi uma das fundadoras, ela tinha a capacidade de “descobrir as pessoas certas para os desafios que propunha e de revelar o potencial dessas pessoas”.

A economista teve diversas responsabilidades na Administração Pública, integrou diferentes grupos de peritos na União Europeia, na Organização Internacional do Trabalho e foi dirigente internacional do Movimento Internacional dos Intelectuais Católicos-Pax Romana.

Os últimos anos de vida, já doente, foram de “grande aproveitamento”, testemunha Guilherme de Oliveira Martins, “para não deixar de fazer o que entendia que tinha de fazer ou escrever”. Administrador da Fundação Gulbenkian e ex-ministro em governos do PS, Oliveira Martins realçou a sua “capacidade de trabalho”, verificando que “o tempo veio dar razão às ideias que ela há muito defendia”, sendo prova disso vários textos do Papa Francisco sobre economia ou ecologia.

O professor de filosofia Viriato Soromenho Marques, que a conheceu quando era ainda jovem estudante e ativista ambiental, observa que “Manuela Silva encontrou na encíclica Laudato Sí’ uma resposta a muitas perguntas que ao longo da vida de economista e de cristã foi fazendo”.

Esta evocação, que contou com a participação de mais de uma centena de pessoas, encerrou com a condecoração entregue pelo Presidente da República, teve como tema “Um desafio para o futuro”. Num tempo em que se recompõem indicadores económicos e critérios de opção política para planear a incerteza, ecoam as palavras da própria homenageada, quando, em 2013, no mesmo auditório do ISEG, recebeu o doutoramento honoris causa: “Convém ter presente que, por detrás dos números que as estatísticas revelam, estão pessoas de carne e osso”.

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