
“Essa explicação relativa à região da qual sou oriunda e as religiões que pratico serve para esclarecer que nunca me foi elucidada a razão da interdição da utilização da mão esquerda em função desses atributos, mas também eu mesma, nem depois de muita procura consegui desvendar o segredo.” Foto: site McGill, Office for Science and Society
Apanhei algumas palmadinhas por utilizar a mão esquerda (até se chama sinistra, em italiano; isso diz muito o que dela se interpreta), na minha infância. Isso aconteceu muitas vezes, ao que me contaram e, estendeu-se a alguns outros palmadões, na adolescência, pelo que pude constatar.
A utilização da mão esquerda, na minha família e no contexto no qual cresci, era interditada, na maior parte das ocasiões e era-nos sempre explicado que esta servia apenas para utilizar “na casa de banho”, sem especificação do real momento em que isso deveria acontecer. Essa era também uma mão feia, com a qual não se deveria receber nada de alguém. E caso houvesse impossibilidade de receber alguma coisa de alguém, com a mão direita, dever-se-ia pedir desculpas.
Eu sou de uma família cristã, do sul de Moçambique e, além dessa religião, na minha família são praticados rituais das culturas e religiões bantu. Sou espiritualmente ambivalente. Essa explicação relativa à região da qual sou oriunda e as religiões que pratico serve para esclarecer que nunca me foi elucidada a razão da interdição da utilização da mão esquerda em função desses atributos, mas também eu mesma, nem depois de muita procura consegui desvendar o segredo. Fiquei, durante muitos anos, com a informação de que era uma mão interditada: feia e apenas para ser utilizada em “trabalho sujo”, para dele não se ficar com impurezas. Era a mão impura, pária. Para a conversa que desencadeio neste texto, é importante frisar que no norte de Moçambique predomina a religião islâmica.
A inquietação em torno da mão pária era, para mim, tão grande, que nunca parei de questionar coisas em torno dela; sobretudo porque, enquanto crescia, verificava que me tinha tornado numa pessoa desajeitada, sem destreza. Deixo cair muitas coisas, quando as tenho nas mãos; parto louça, quando a lavo; ou, em tempos idos, ao fazer bordados, tricô ou crochet, muitas foram as vezes que fiz o percurso contrário do alinhamento ou do ponto a ser seguido nessa actividade. Perguntei, uma vez, à minha avó, mãe da minha mãe, por que razão é que isso acontecia e ela disse que deveria ficar mais atenta ao trabalhar, para não errar nas coisas. Foi apenas isso.
Já andava na universidade quando, certo dia, contei àquela minha avó que tinha uma professora ambidestra e que, às vezes, fazia-nos confusão vê-la escrever em cada metade do quadro com a mão que estivesse “à mão” desse lado, ou seja, escrevia em cada metade do quadro com uma das mãos. Disse-me a minha avó: “A tua tia, irmã da tua mãe, não deve fazer o mesmo na escola, porque sabe que eu não iria gostar. Mas, infelizmente, faz imensas coisas com as duas mãos.” Um parêntesis: a minha tia é também professora. Perguntei à minha avó a razão que a levaria a não gostar que a minha tia procedesse como a minha professora, mas ela não me explicou. Acrescentou que a minha prima, filha do irmão do meu pai, é canhota. E que ninguém conseguiu corrigir esse defeito nela. Disse-me ainda: “O que vale é que, em ti, conseguimos.” A ideia de se tratar de um defeito deixava-me intrigada. E fiquei, além disso, a saber que tinha sido canhota e que o uso dessa mão, ou seja, o “defeito”, me tinha sido corrigido. Mais intrigante!
Por causa disso, um desses dias perguntei a uma vizinha por que razão ser canhota seria uma imperfeição a corrigir. Sendo enfermeira, tinha uma explicação científica, a meu ver. Disse-me ela: “Não se deve corrigir. Ao fazê-lo, deixamos a pessoa com defeitos reais. Aí é que, de facto, fica imperfeita, por ser forçada a funcionar contrariamente à natureza do seu cérebro. Já viste o que te tem acontecido? Muito provavelmente terias sido canhota, não sei, mas desconfio; porque soube que a tua mãe te fez um tratamento para não partires a louça, quando a lavas ou a arrumas.”

E eu me recordava do ritual. Consistiu em pegar em dois pedaços dos cacos do que eu tinha partido e, por cima da minha cabeça, bater um caco no outro e deixar cair mais pedaços desses cacos na minha cabeça, como forma de me tratar para não partir mais louça. O intuito não era ferir-me, o que de facto não aconteceu. Entretanto, pelo que hoje ainda verifico, esse ritual não me curou, embora tivesse fé que o faria. Por causa dessa ausência de tratamento para o partir a louça, a curiosidade sobre o impedimento da utilização da mão esquerda persistia.
Só há bem poucos dias é que decidi colocar a pergunta de outro modo. Questionei um colega-padre católico qual seria a razão para que, sempre que utilizamos a mão esquerda, no contexto moçambicano, termos de pedir desculpas. Ele disse-me que religiosamente não lhe parecia haver motivo algum, até porque a mão esquerda era também uma mão colocada por Deus e útil no nosso dia-a-dia. Disse-me ainda que julgava que a explicação poderia ter origem em algo não ligado à religião, mas em questões socialmente construídas e que poderíamos pesquisar.
Voltei a fazer a mesma pergunta a um grupo de amigos muçulmanos porque me parecia haver alguma razão ligada a essa religião pois, tendo vivido no norte do país, tinha prestado atenção à inibição no uso dessa mão. A resposta que tive foi curiosa. E, por causa disso, constatei que há que termos muita atenção ao sentido das palavras, bem como à sua interpretação, pois um dos meus amigos desse grupo, enviou-me um link que remetia para uma explicação retirada do Alcorão.
No texto afirmava-se que o Alcorão prescreve normas culturais (orientação para a vida) e normas divinas (também para a vida, sobretudo a espiritual, entendo eu), a partir das quais, no que à mão esquerda diz respeito, deve haver preferência na utilização da mão direita, em detrimento da mão esquerda; que a mão direita é relacionada com o que é nobre (alimentação e limpeza) e que, com a mão esquerda, limpam-se as impurezas e é a mão utilizada na casa de banho. Até aí, nada de novo. Entretanto, explica o Alcorão que quem não tem aptidão para utilizar as mãos em função dessa prescrição não tem de o fazer e não é pecado. Mão na luva, era a explicação que faltava!
Quer-me parecer que se trata de uma espécie de divisão de tarefas para as mãos, uma vez que com elas podemos nos cuidar ou infectar. E ainda bem que o facto sempre me intrigou, porque não segui os preceitos da minha cultura, quando a minha filha nasceu. Ela é canhota. Custava-me vê-la a fazer os seus primeiros gatafunhos da direita para a esquerda; além disso, não me foi fácil ensinar-lhe a escrever para a direcção mais comum do curso que as letras e as palavras devem seguir. Com o tempo, acabou aprendendo a seguir em função do que o seu cérebro dita, aliando isso ao funcionamento da sociedade que é na sua maioria destra. Ela está integrada. Aprendeu a adaptar-se ao mundo destro que não é inclusivo. Algumas vezes tivemos dificuldades com a utilização da tesoura e do rato do computador, na sua infância… Na adolescência, fez-lhe confusão o tampo ligado às cadeiras em anfiteatros, porque fica sempre à direita. O que ela mais reclamava e recusava-se a fazer, era pedir desculpas por utilizar a sua mão esquerda…
O sentido das palavras, a interpretação destas e a invenção ou aumento de instrumentos facilmente utilizáveis por canhotos, conta. Hand lefted people matter! O mundo poderia ser mais inclusivo! E viva a demanda, por me ter desvendado o feitio, através da leitura daquele trecho do Alcorão.
Sara Jona Laisse é docente da Universidade Católica de Moçambique e integra o Graal-Movimento Internacional de Mulheres Cristãs. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br