Mãos à obra (7) – Musas: do futebol à horta comunitária

| 22 Abr 2021

A multidiversidade do Musas espelha-se também no diálogo intergeracional. Foto © Ursula Zangger.

 

O Sport Musas e Benfica, conhecido popularmente por Musas, foi criado em 15 de março de 1944, em pleno salazarismo e no final do horror que foi a II Guerra Mundial. Reunia então uma parte da comunidade de jovens das zonas do Bonjardim, da Fontinha e do Leal, na cidade do Porto. A prática do desporto, sobretudo do futebol, era um meio de convívio, mas também uma forma de resistência à vida sombria da época.

Como diz Luís Chambel, presidente da direção do Musas, “essa é a identidade mais profunda do clube, já que foi fundado na Rua das Musas onde se diz nasceu o poeta José Gomes Ferreira”. Hoje tem a sua sede na Rua Bonjardim, número 998, por onde se faz a entrada para as hortas. Inserido num bairro com história operária ainda por contar, o Musas, à semelhança de outras pequenas associações, parecia estar condenado ao desaparecimento. Sendo a maioria dos sócios gente idosa, as atividades esmoreciam e, aos poucos, o Musas entrava numa certa letargia. Havia que se abrir aos mais jovens e trazê-los de volta.

Graças a um grupo de sócios mais jovens, com outra visão, dinâmica e empenhamento, em 2004 foi criado o Espaço Musas “como uma secção cívica e cultural do Sport Musas e Benfica funcionando como um departamento autónomo, dedicado à arte, à cultura, lazer e conhecimento”. Este foi o despertar para novos voos, para novos projetos, outras atividades: biblioteca, xadrez, música, poesia, exposições… O xadrez é hoje uma das principais atividades, com direito a uma escolinha, para miúdos e graúdos, tendo o Musas uma equipa federada. Sem esquecer a sua já famosa  Horta Quinta Musas da Fontinha.

Como também conta Luís Chambel, “o Musas assenta numa perspetiva de fomentar os contributos individuais e a autonomia dos seus participantes, em respeito pela sua inserção numa prática de cooperação ativa, na decisão horizontal e por consenso. Ao nível comunitário, preza a sua inserção no meio em que se encontra, pretendendo uma relação de entendimento e cooperação com os seus vizinhos na comunidade local”.

O xadrez é uma ferramenta formativa para a capacitação de crianças e jovens e para a convivialidade. Foto © Ursula Zangger.

Horta urbana comunitária

Alguns dos terrenos atuais da horta, localizados nas traseiras dos edifícios da Rua do Bonjardim foram outrora hortas domésticas. No entanto, algumas destas casas ficaram desabitadas ou, noutros casos, os habitantes envelheceram e deixaram de conseguir cultivar os seus quintais (…), pelo que já não eram cultivados há cerca de 30 anos. À data do início do projeto estes terrenos encontravam-se completamente inacessíveis devido ao entulho e ao mato que aí se encontrava.” (*)

Entretanto, o Movimento Terra Solta, especialista na reabilitação de espaços abandonados e defensor de comunidades urbanas de proximidade, “tomou conhecimento do espaço e reconheceu o seu potencial para a implementação de uma horta urbana”. (*) Através das redes sociais, mobilizou a comunidade e apelou ao apoio de voluntários para a limpeza do terreno. Em dois meses a tarefa estava cumprida, tendo superado em muito as expectativas dos dirigentes do Musas. Que fazer? Que tipo de hortas? Foi aí que o Terra Solta colocou a sua experiência e saber ao serviço do Musas e da comunidade em discussões bastante participadas. O lançamento público da horta deu-se em 2010.

O projeto Quinta Musas da Fontinha é uma experiência social comunitária traduzida na forma de uma horta urbana que se pretende aberta e se expressa numa prática agrícola assente na sustentabilidade e preservação dos recursos do planeta”, pode ler-se no folheto de apresentação.

Colocámos algumas perguntas a Luís Chambel para melhor perceber esta iniciativa e a forma como se organiza.

 

Quantos sócios tem o Musas? E os envolvidos na quinta?

Magusto no Musas, uma ocasião para o convívio, a partilha e o debate. Foto © Ursula Zangger.

 

O número de sócios é hoje cerca de 290, incluindo associados no estrangeiro e noutras cidades do país. O número dos envolvidos diretamente na quinta com um talhão individual é de cerca de 30. Muitos dos antigos hortelões, que, entretanto, por motivos vários, tiveram que se afastar da quinta, continuam sócios do Musas.

 

Que área ocupa atualmente a Quinta? É uma das maiores da Europa em meio urbano?…

A pomposamente chamada por nós “Quinta Musas da Fontinha” está longe de ser uma das mais extensas da Europa. É apenas uma horta comunitária com 2 500 m2 de área, incluindo 30 pequenas hortas, causando eventualmente grande espanto a quem a conheça o facto de situar-se a cinco minutos a pé do centro do Porto, escondida no alto de uma colina interior, atrás de uns prédios, e de onde se pode avistar o mar. Além dos talhões individuais (todos com nome de frutos), existem zonas de utilização coletiva: agrofloresta, terra das crianças (atividades educacionais), canteiros de aromáticas…

 

Mas como têm as pessoas acesso a um talhão?

Todas as decisões no Musas são tomadas coletivamente. Quando é necessário decidir algo com urgência as decisões são sujeitas a ratificação posterior. E a decisão deve ser sempre tomada por consenso tentando encontrar-se a posição comum que permita avançar-se. Em princípio nunca se entrega um talhão a uma pessoa que o queira sem, primeiro, essa pessoa – obrigatoriamente sócia do Musas – ter participado por um certo período (por agora, três meses) no apoio às hortas comunitárias, aos talhões de aromáticas ou à agrofloresta, ou no apoio à biblioteca, limpeza da sede, organização de exposições, debates, torneios de xadrez, ou noutras tarefas de interesse para a associação.

A atribuição de um talhão individual (todos os que são conhecidos pelo nome de um fruto) depende do reconhecimento do compromisso do associado para com a quinta. Se pela sua entrega e convívio com os demais sócios se mostrar dentro do espírito de cooperação coletiva e tiver interesse em assumir essa responsabilidade, ela ser-lhe-á reconhecida em assembleia logo que possível (nem sempre há talhões de responsabilidade individual disponíveis).

 

Qual o valor da quota?

O valor da quota é inteiramente decidido por cada um; os sócios que se tornam hortelões não pagam mais nada por isso, apenas partilham entre si os gastos de água das regas efetuadas na quinta.

 

As pessoas são livres de cultivarem o que entenderem?

Sim, desde que não façam uso de adubos químicos. Todavia, como o processo é coletivo, há a obrigação de darem a conhecer as suas culturas. Caso se verifique uma situação que possa ser prejudicial (por causa de polinizações cruzadas, ou por se verificar um excessivo uso da terra – por exemplo sem afolhamento ou sem uso de leguminosas), a situação pode ser discutida em coletivo. Existe uma ficha de registo para controlo das culturas da quinta. Estamos empenhados numa agricultura sustentável, comunitária e biológica.

 

Quem são as pessoas que solicitam talhões e cultivam a quinta?

A quinta tem grandes problemas de acessibilidade – vários lanços de escadas e corredores estreitos até chegar a ela, lá acima. As pessoas com mobilidade reduzida não têm possibilidade de participar, o que é uma questão que nos preocupa, mas muito difícil de resolver. Tem havido sempre pessoas mais idosas a participar na quinta, mas o seu número é residual relativamente aos jovens.

Concerto na apresentação de dois livros de poesia da editora Amateur. Foto © Ursula Zangger.

 

E os produtos podem ser vendidos?

As colheitas têm sido inteiramente para consumo próprio dos hortelões ou, mais esporadicamente, dos eventos da associação. Todavia estamos agora a pensar em, eventualmente, vendermos novas plantas produzidas para apoio ao financiamento da associação. Isso pode permitir responder a parte das dificuldades causadas pela pandemia, aumento do valor das nossas rendas, custas com advogados…  

 

Como asseguram a sustentabilidade da associação?

Tentamos partilhar todas as despesas, quer diretamente através da associação (em casos de interesse geral), quer em relação aos interesses parciais dos envolvidos em cada atividade. Como não há um objetivo de lucro, a sustentabilidade é assegurada garantindo-se que há um equilíbrio entre as despesas (ferramentas ou materiais, gastos de água e outras) e as receitas (atividades do bar – sobretudo festas, almoços, jantares, organização de torneios). Os hortelões recolhem a sua colheita em proveito próprio, podendo também doar parte dela precisamente para a realização dessas festas, almoços e jantares.

 

Como combatem o consumo irresponsável e a mercantilização da vida?

 Procuramos que as nossas escolhas limitem ao indispensável o recurso ao dinheiro e ao mercado nas suas atividades. Por exemplo, as sementes nunca são vendidas, são sempre cedidas. Todos os eventos realizados no Musas são gratuitos: concertos, recitais, almoços e jantares, seja o que for. Em último caso, quando necessário, é pedido um contributo voluntário para ajudar a custear despesas inevitáveis. Todas as avarias e reparações são, na medida do que for possível, sempre reparadas por nós próprios.

Não se pretende, de forma alguma, constituir-se numa qualquer forma de negócio, mas um projeto onde a sustentabilidade seja o foco principal da sua atividade, proporcionando uma experiência que vai muito além da simples gestão da atribuição de lotes. Não se é utente da Quinta Musas da Fontinha, é-se sócio do Musas, o que é muito diferente. Se algum sócio tiver que deixar de cuidar de algum talhão, não é por isso que deixa de ser sócio do Musas.

 

O banco de sementes insere-se nessa lógica?

O banco de sementes pretende ser uma alternativa à compra mercantil de sementes. Resulta da recolha de sementes de plantas produzidas na quinta e noutros espaços amigos e que se preservam para serem semeadas em anos posteriores. Além das sementes produzidas no Musas, temos algumas sementes vindas da Colher para Semear – Rede Portuguesa de Variedades Tradicionais, e de outros hortelões amigos, por dádiva ou por troca. É feito um registo do património existente, quer em quantidade quer quanto à sua viabilidade (pelo ano de produção e as especificidades da planta respetiva). É feito o registo das entradas e saídas, por pesagem ou cálculo do número de sementes.

 

Os vizinhos que cederam os terrenos para cultivo têm alguma contrapartida?

Os vizinhos não têm qualquer contrapartida, a não ser verem-se livres das pragas de ratos que por vezes os apoquentavam. Por sua vez, os vizinhos também não têm nenhuma obrigação para com a quinta, tendo já ocorrido casos em que perdemos alguns talhões, dado terem sido vendidos os terrenos desses vizinhos.

 

O Musas tem sido um exemplo de resistência à pressão e especulação imobiliárias, reinventando a cooperação social entre indivíduos, com a Quinta Musas da Fontinha a afirmar-se como alternativa a uma cidade onde cada vez mais os laços comunitários dão lugar ao vazio das propostas turísticas e à degradação dos serviços públicos de proximidade. A investida que o Musas tem sofrido da parte dos agentes imobiliários levou-o a ter que contratar apoio jurídico e a viver uma situação que poderíamos chamar de precária.

 

(*) NotaFlávia Alexandra Rosa Santos, “Hortas Urbanas de Iniciativa Comunitária – Participação e Desenvolvimento:  dois casos de estudo” (Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Desenvolvimento, Diversidades Locais e Desafios Mundiais), Setembro 2012, ISCTE/IUL.

 

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