A Casa Santa Isabel situa-se em São Romão, no concelho de Seia, no sopé da Serra da Estrela e estende-se por uma área de cerca de 40 hectares. Carlos Páscoa, colaborador residente desde 1983 e membro da direção, apresenta os objetivos desta comunidade terapêutica que ao longo de 40 anos trilhou caminhos de irmandade, cuidado com o outro e respeito pela natureza. Numa segunda parte, apresentamos uma pequena entrevista telefónica com o mesmo responsável.

“Desenvolvemos atividades de âmbito terapêutico, social e cultural que procuram dar resposta às inúmeras carências sentidas por uma população esquecida.” Foto: Direitos Reservados
Os ventos do 25 de Abril de 1974 derrubaram muros e fronteiras trazendo um germinar de novas ideias a um interior esquecido e a definhar. Na segunda metade dos anos 70, com as possibilidades de abertura surgidas, lança-se à terra a semente de um projeto de comunidade terapêutica que venha a apoiar e dignificar a vida de crianças, jovens e adultos necessitados de cuidados especiais, no âmbito da deficiência mental. Após muita “lavra” e cuidados, nasce em maio de 1981 a Casa Santa Isabel – Instituto de Pedagogia Curativa e Socioterapia.
O que pretendemos
Ao longo de 40 anos de existência desenvolvemos atividades de âmbito terapêutico, social e cultural que procuram dar resposta às inúmeras carências sentidas por uma população esquecida, proporcionando aos nossos “companheiros” condições de vivência comunitária, que tendencialmente os autonomize e lhes proporcione vivências dignas.
Este impulso vai beber aos princípios sociais, culturais e económicos emanados da antroposofia como caminho para, em liberdade, adquirir consciência do ser humano baseado na responsabilidade individual, através do conhecimento do mundo e do autoconhecimento.
Procuramos proporcionar um ambiente harmonioso que, em todas as suas vertentes, desde o cuidado da natureza circundante até aos pequenos gestos do quotidiano, imprimam um cariz terapêutico. Ao longo destes anos melhorámos a nossa floresta e o solo; substituímos o predominante pinheiro por milhares de árvores de folha caduca e através dos métodos de agricultura biodinâmica tornámos a terra produtiva e cultivável, resgatando a biodiversidade primordial, tornando o nosso entorno mais aprazível e onde dê gosto estar e viver.
O espaço
A Casa Santa Isabel situa-se em São Romão (Seia), no sopé da Serra da Estrela e estende-se por uma área de cerca de 40 hectares. Temos cinco lares residenciais onde os nossos 44 companheiros (utentes) internos coabitam com os colaboradores numa dinâmica familiar. Para além do lar residencial, temos também a resposta social de Centro de Atividades para a Capacitação e Inclusão para 45 utilizadores e formação profissional com cerca de 30 formandos.
É aqui, numa interação constante com a natureza e as pessoas que nela vivem, que procuramos criar uma comunidade de vida, de trabalho e de constante aprendizagem, num caminho tendente à criação de relações sociais saudáveis num ambiente terapêutico de qualidade dedicado ao desenvolvimento integral do ser humano e à sua renovação pessoal, social e cultural.

“É aqui, numa interação constante com a natureza e as pessoas que nela vivem, que procuramos criar uma comunidade de vida”. Foto: Direitos Reservados
A filosofia
Reconhecemos que cada pessoa enquanto indivíduo, independentemente da sua capacidade cognitiva ou maturidade, tem em si próprio capacidades excecionais. Assim, todos têm a possibilidade de desenvolver o seu potencial e, conforme as suas capacidades, contribuir para as necessidades reais da comunidade e do mundo envolvente.
Todos os “companheiros” são inseridos em oficinas onde, em conjunto com os mestres e outros colaboradores, trabalham para a criação de um produto ou serviço de qualidade. Mediante as suas preferências e aptidões podem escolher trabalhar e desenvolver o seu potencial nas várias oficinas ao seu dispor: padaria, agricultura, silvicultura, oficina do livro, carpintaria, tecelagem, ervas aromáticas, velas, lavandaria, construção civil, cozinha, artes e ofícios.
O produto final deve servir as necessidades da comunidade, numa lógica de auto produção. O restante é vendido em feiras, comércio local ou na nossa loja, Quatro Estações. Desta forma cada um sente-se valorizado no seu trabalho como contributo para o desenvolvimento e humanização.
Para além do trabalho oficinal, há atividades terapêuticas e culturais, fundamentais para a criação do ambiente pretendido. Conforme as necessidades individuais e com indicação do nosso médico, os “companheiros” ou colaboradores recebem terapias especificas e especializadas como euritmia, quirofonética, banhos terapêuticos, terapia artística, terapia da fala, bowen, musicoterapia, psicologia com diferentes abordagens psicoterapêuticas, apoio social e acompanhamento na inserção profissional.
O trabalho intenso mas motivador teve e tem um contributo fundamental de mais de 400 jovens voluntários que, ao longo destes 40 anos e vindos de variados países, connosco colaboram. São jovens dispostos a experimentar a vida comunitária e o trabalho com os nossos “companheiros” proporciona-lhes uma experiência inigualável, rica em humanismo.
A vida cultural é, também ela, fundamental para o ambiente terapêutico pretendido. Desta forma e ao longo do ano, desenvolvemos atividades que concretizem este aspeto e que contribuam para uma efetiva inserção na comunidade. Tendo por referência as festas cristãs, organizamos atividades para fortalecer laços interpessoais e religando-nos ao mundo. Desde 2018 promovemos também mensalmente um sarau cultural mensal (interrompido pela pandemia) aberto a quem quiser participar e que já teve 30 edições englobando concertos, debates, conferências, dança.
Queremos contribuir para um processo de renovação social que nos leve a uma sociedade mais equitativa, com novas formas sociais não hierárquicas. Por isso procuramos ter uma organização horizontal, administrada de forma colegial, em que todos tenham a possibilidade de fazer ouvir a sua voz e contribuir com a sua participação para o desenvolvimento da Casa Santa Isabel.
O fórum central de decisão é o Conselho de Colaboradores, em que todos podem participar, num diálogo sociocrático exigente, mas motivador e em constante desenvolvimento. Temos também grupos de mandatos, com delegação de tarefas específicas admissão, monitores, formadores, cultura, economia, planeamento e outros que poderão ser criados conforme as necessidades.
Desta forma “chamamos” todos os que se queiram vincular e contribuir para a vida saudável da instituição, definindo em conjunto e desenvolvendo uma nova consciência social. Parafraseando Rudolf Steiner: “A vida social salutar só existe quando no espelho da alma humana se reflete a comunidade inteira e quando na comunidade vive a força da alma individual”.

“Todos têm a possibilidade de desenvolver o seu potencial e, conforme as suas capacidades, contribuir para as necessidades reais da comunidade e do mundo envolvente.” Foto: Direitos Reservados
“A sociocracia é um processo que traz grandes vantagens, mas dá trabalho”
7MARGENS – O papel de colaboradores internos e externos depende apenas do interesse de cada pessoa ou há critérios para a decisão?
Carlos Páscoa – Quando entra um novo colaborador para a valência lar residencial é uma premissa importante que se torne interno, pois essa é a dinâmica comunitária e não faz sentido de outra forma.
Muitos acabam por constituir família na própria comunidade. Esse foi o meu caso. Cheguei no início com 21 ou 22 anos, conheci uma voluntária, casei, tive duas filhas e hoje, com 60 anos, continuo aqui. É uma opção de vida. Os colaboradores são recrutados atendendo às necessidades da instituição e os externos diferenciam-se dos internos unicamente pelo facto de não viverem na comunidade.
Mas na família de um colaborador, o cônjuge pode trabalhar fora?
Raramente acontece porque, como disse, muitos acabam por constituir família no seio da comunidade. Mas pode acontecer. Atualmente, temos um arquiteto que tem o seu ateliê fora da comunidade. Mas também contribui para o bem comum sendo o responsável, por exemplo, pela manutenção das instalações.
E os filhos?
Trata-se de famílias normais que apenas vivem em comunidade. As crianças, como em qualquer família, vão à escola, vão para a universidade e percorrem o seu próprio caminho.
Alguém que trabalha fora pode ter um salário superior quando comparado com outros colaboradores internos? Isso não causa problemas? E como se partilham os custos? Os colaboradores pagam renda à comunidade pelas instalações onde residem?
Mesmo entre os colaboradores internos os salários são diferentes, seja porque pagos por entidades diferentes, mediante acordos com a Casa de Santa Isabel, seja porque as pessoas têm competências diferentes. Nós criámos – e está na origem da comunidade – um Fundo Social: na vida comunitária não faz sentido existir disparidades salariais, já que todos contribuem para o bem comum e todos os colaboradores internos colocam o seu vencimento no Fundo Social. Cada um é livre de o fazer, mas até agora todos o têm feito.
Todos recebem a mesma quantia, a que chamamos dinheiro de bolso. Este fundo é dos colaboradores e foi a partir da gestão do fundo que se criaram outros fundos de proteção à saúde, de apoio aos estudos das crianças e jovens e um fundo de poupança para apoio às reformas. Do Fundo Social sai também o pagamento das rendas das habitações de acordo com o orçamentado. Trata-se de um montante global e não indexado a cada residência. Para além disso, foi decidido que 1% do total de vencimentos é destinado a doações de solidariedade. Para dar um exemplo, neste momento somos responsáveis pelo apoio à educação de 10 crianças em Moçambique.

“Hoje recebemos muitos voluntários da América do Sul, com vontade de experienciar uma forma de vida social e laboral diferenciada.” Foto: Direitos Reservados
Como é que chegam ou chegaram até vós esses 400 voluntários em 40 anos?
Os voluntários são fundamentais no apoio à comunidade e nos cuidados prestados aos companheiros. Temos um programa próprio, anual, para o verão ou por períodos curtos. Por outro lado, fazemos parte de uma rede internacional de instituições de Pedagogia Curativa e Socioterapia ligadas a agências de voluntariado com as quais trabalhamos e nos enviam voluntários.
No passado, muitos deles eram alunos de Escolas Waldorf, vindos da Europa Central, que faziam um ano de estágio ou um serviço alternativo ao Serviço Militar obrigatório. Hoje recebemos muitos voluntários da América do Sul, com vontade de experienciar uma forma de vida social e laboral diferenciada. Alguns acabam por ficar definitivamente na comunidade. Alguns entraram com 18 ou 19 anos e hoje têm 40 ou 50 anos e por cá continuam.
Quantos colaboradores têm atualmente? No total, quantas pessoas vivem na comunidade?
Pertencem ao quadro da instituição 56 colaboradores. Atualmente vivem na comunidade 30 colaboradores, 11 voluntários e 44 companheiros (utentes), além de 10 filhos de colaboradores. No total vivem na comunidade, de forma permanente, 95 pessoas.
Para alguns a comunidade é a sua família. Podemos dizer que são totalmente institucionalizados?
A comunidade é a família como um todo. Mas há 15 companheiros sem qualquer vínculo familiar, nós somos os únicos responsáveis por eles. Esses estão totalmente à responsabilidade da instituição. Na verdade, a maioria dos companheiros, seja pela idade, seja pelas necessidades ou cuidados especiais, de que necessitam acabam por estar também totalmente institucionalizados.
É difícil o acolhimento de novos companheiros?
Sim, já há muito tempo que não entra ninguém por não termos lugar para mais. Mas também temos tido algum cuidado no crescimento, pois há que crescer de forma sustentada sem perder a essência do projeto.

“Há muito tempo que não entra ninguém por não termos lugar para mais.” Foto: Direitos Reservados
E os colaboradores externos?
Tanto para formação (duração de 3 anos), dirigida a jovens com necessidades especiais, com 30 formandos, como para o Centro de Atividades para a Capacitação e Inclusão (CACI) com 45 utentes, recorremos essencialmente a colaboradores externos. Os CACI vieram substituir os centros de atividades ocupacionais. Tanto a formação como o CACI são formas de nos abrirmos ao exterior e de prestarmos serviço à comunidade. Evitamos isolar-nos como se fôssemos uma ilha.
Tem alguma ideia da percentagem de formandos que foram inseridos no mercado laboral?
Nós somos uma das entidades que tem taxas de inserção mais elevadas. Ultrapassa um pouco os 30% de formandos que encontraram colocação formal ou estágios.
O espaço envolvente, a quinta, é uma vertente importante da filosofia da comunidade, da terapia dos utentes e até de sustentabilidade. Qual a sua centralidade na dinâmica da comunidade?
A quinta funciona como uma oficina, a oficina de agricultura. Se por um lado ela é um contributo terapêutico importante, por outro representa, em parte, a sustentabilidade alimentar da comunidade. A nossa ideia é sermos completamente autossuficientes e podermos ainda retirar algum rendimento.
Mas os terrenos são pobres para a exploração agrícola. Por isso adquirimos um terreno agrícola a uns sete quilómetros daqui. Pretendemos que a agricultura biodinâmica e a socioterapia formem de novo um casamento feliz.
A função do Conselho dos Colaboradores é só consultiva ou tem um papel nas decisões?
Neste Conselho têm assento todos os colaboradores, internos e externos, e tem um papel de decisão. As grandes decisões da comunidade são tomadas pelo Conselho e não pela Direção. Os voluntários só têm assento no Conselho após um ano de permanência na comunidade. Antes não faz sentido. Pretende-se que as decisões sejam o mais horizontais possível.
E os diversos Grupos de Mandatos?
Estes grupos têm também autonomia para tomar decisões. É uma questão de confiança e de descentralização do poder de decisão. Em questões mais complexas ou em que surjam dúvidas remetem a decisão para o Conselho dos Colaboradores. A sociocracia é um processo que traz grandes vantagens, mas dá trabalho.

Trabalho na Quinta, cuidado com as jovens crias. Foto: Direitos Reservados.