Margot Friedländer: Os “seres humanos que me salvaram”

| 4 Nov 2021

“Quando subiu ao palco – uma senhora baixa e franzina, cheia de energia – quase parei de respirar. Tinha à minha frente alguém que atravessou 100 anos da nossa História, e cuja vida foi profundamente marcada pelo maior dos crimes.” Foto:  Margot Friedlander. © Scott-Hendryk Dillan /Wikimedia Commons

 

Dia 12 de Outubro foi dia de “Salão Filarmónico” na Kammermusiksaal, em Berlim, e a convidada era Margot Friedländer, uma sobrevivente do Holocausto que fará 100 anos neste dia 5 de novembro.

A sessão começou com Dagmar Manzel a cantar canções berlinenses dos anos 20. As canções descontraídas, divertidas, brejeiras que Margot terá ouvido em criança, no tempo da República de Weimar, pouco antes de os nazis chegarem ao poder.

Quando subiu ao palco – uma senhora baixa e franzina, cheia de energia – quase parei de respirar. Tinha à minha frente alguém que atravessou 100 anos da nossa História, e cuja vida foi profundamente marcada pelo maior dos crimes.

Ela sentou-se no seu cadeirão, e encheu a sala com a sua voz elegante e serena, a contar: da sua infância feliz no seio de uma família enorme, da chegada dos nazis ao poder, do divórcio dos pais em 1937 e da sua mudança com a mãe e o irmão para uma pensão, porque tencionavam sair do país em breve. Das tentativas da mãe para fugir do país e da recusa do pai em assinar os papéis (“se é para passarem fome na Austrália, podem muito bem ficar em Berlim”). Da sua mudança forçada para um prédio de realojamento de judeus. Da manhã a seguir ao 9 de Novembro de 1938, quando a caminho do trabalho passou por inúmeras lojas destruídas que ela nem sabia que pertenciam a judeus. Do terrível estado em que encontrou o atelier onde trabalhava, e da descoberta da ganância dos vizinhos, até então gente civilizada, que agora aproveitava a destruição para pilhar. Do Bar Mitzvah do irmão, que se devia realizar no sábado seguinte e já não aconteceu porque a sinagoga estava em cinzas. E daquele dia em Janeiro de 1943 que mudou tudo: ela regressava a casa depois do trabalho, e teve um mau pressentimento quando um homem com aspecto estranho passou por ela. Apertou melhor a carteira contra o peito, como fazia sempre para esconder a sua estrela amarela, e continuou. Assustou-se ao ver que o homem entrava pela porta do seu prédio. Mesmo assim, admitiu que fosse visitar alguém, e entrou também. Ao subir as escadas, viu que ele estava parado em frente à porta do apartamento onde ela própria vivia. Fazendo das fraquezas força, passou por ele de cabeça levantada e subiu mais um andar. A vizinha que lhe abriu a porta contou-lhe que a Gestapo tinha vindo buscar todos, mas só encontrara o irmão dela. Nessa noite dormiu na casa da vizinha, e no dia seguinte começou a procurar a mãe. Encontrou finalmente sinais dela na casa de outra vizinha, que lhe deu a notícia de que a mãe se fora entregar à Gestapo para acompanhar o filho na deportação para Auschwitz [e eu a gritar para dentro de mim: “oh, não! a escolha de Sofia!”] e deixara à filha mais velha o seu colar de âmbar, um caderninho de apontamentos, e uma última frase: “tenta fazer a tua vida”.

“A vizinha que lhe abriu a porta contou-lhe que a Gestapo tinha vindo buscar todos, mas só encontrara o irmão dela. Nessa noite dormiu na casa da vizinha, e no dia seguinte começou a procurar a mãe.” Foto: Margot Friedländer, à esquerda, com seu irmão Ralph e uma prima, 1937. Direitos Reservados.

 

Ela tentou fazer a sua vida: pintou o cabelo de ruivo, pôs ao pescoço um cordão com cruz, fez uma operação para mudar a forma do nariz, andou fugida de casa em casa – num total de 16 agregados que puseram as suas próprias vidas em risco para salvar a dela. Uma vez, numa dessas casas, tocaram à campainha e ela abriu a porta. Eram homens da Gestapo que vinham fazer uma busca. Enquanto eles examinavam os documentos das pessoas presentes, ela aproveitou um momento de distracção e saltou pela janela. Dessa vez conseguiu escapar, mas a sorte falhou-lhe tempos depois, quando foi denunciada por um daqueles judeus que identificavam outros em troca da protecção dos seus próprios familiares. Deportaram-na para Theresienstadt.

– E as pessoas dessas 16 casas que a ajudaram, que gente era essa?, perguntou o moderador. Eram opositores políticos? Resistentes?

– Seres humanos, respondeu ela. Pessoas cujo sentido de humanidade as impedia de fazerem de conta que não viam o que estava a acontecer.

Dagmar Manzel voltou ao palco. Sentou-se no degrau junto ao cadeirão de Margot Friedländer, e cantou-lhe o que me pareceu ser uma canção hebraica. Belíssima.

[Eu comovida com o símbolo: uma canção hebraica cantada com humildade no centro de uma das mais importantes instituições da cultura de Berlim. Que não nos falhem nunca estes símbolos e estas pontes.]

Margot continuou o relato: o seu trabalho em Theresienstadt, o reencontro com um homem que já conhecia de Berlim e com quem viria a casar no campo pouco depois da libertação, antes que o último rabino se fosse embora. O momento em que descobriu o que era Auschwitz: quando chegou um comboio que trazia prisioneiros de Auschwitz que o exército alemão retirara à pressa, para esconder a evidência do crime antes da chegada do exército soviético. Do meio daqueles vultos tenebrosos, que ela não sabia bem dizer se estavam mortos ou vivos, ergueu-se uma voz: “Margot, não me reconheces?”, e não, ela não fora capaz de reconhecer o seu antigo amigo. Nesse momento teve a certeza que a mãe e o irmão não voltariam nunca.

[Li noutro livro uma referência semelhante a essa sobre o comboio que veio de Auschwitz, por um sobrevivente que na altura era ainda criança. Também ele teve dificuldade em reconhecer a miúda alegre e despachada, pela qual estavam todos mais ou menos apaixonados, e que poucos meses antes fora levada de Theresienstadt num dos comboios com destino à Polónia.]

Em 1946, Margot e o marido emigraram para os EUA. Ao avistar a estátua da Liberdade, olhou-a com desprezo: “então é aqui que tu estás, Liberty? Pois olha que não te devo nada: quando mais precisei de ti, não me ajudaste. Só agora, quando já sou uma pessoa livre, é que te mostras.”

Depois da morte do marido, em 1997, Margot aceitou um convite da cidade de Berlim dirigido a “judeus perseguidos e emigrados”, e em 2003 veio visitar a sua cidade natal. Ficou encantada: “ah, tivesse eu dez anos menos, e mudava-me para aqui!”

Oito anos depois – com 88 anos – mudou-se para Berlim. E desde então não tem parado de apelar a todos aqueles a quem conta a sua vida, para que não esqueçam nunca o seu dever de humanidade.

Contou que no decorrer da cerimónia solene em que lhe deram a nacionalidade alemã perguntou directamente: “Não estão à espera que eu agradeça a devolução de algo que me roubaram há tantos anos, pois não?” – e virou-se para nós em tom desafiador: “Eu sou alemã! Eu sou alemã!”

A sala começou a aplaudir com força. Eu olhava em volta, “ninguém se levanta? ninguém se levanta?”, uma pessoa ergueu-se, eu saltei como se tivesse uma mola, e no momento seguinte todos aplaudiam de pé.

Dagmar Manzel voltou ao palco para cantar Wenn ich mir was wünschen dürfte, de F. Hollaender.

 

E uma última canção, a sua canção favorita, disse ela, com música de Werner Richard Heymann.

Cantou:

Em algum lugar no mundo há um bocadinho de sorte
E é nisso que penso sem parar
Em algum lugar no mundo há um pouco de felicidade
E há tanto tempo que penso nela

Se soubesse onde está, punha-me a caminho
Porque por uma vez quero ser inteiramente feliz
Em algum lugar no mundo começa o meu caminho para o céu
Em algum lugar, de algum modo, em algum momento.

 

– e depois abracou Margot Friedländer longa, longa, longamente.

A sessão tinha terminado, mas eles ainda estavam no palco, e ficamos todos a olhar uns para os outros sem saber o que fazer, até que desatamos a rir, o que ajudou a disfarçar as lágrimas.

 

I have so much longing
I dream so many times
that just once hapiness will be close
I have so much longing
I have hoped,
That soon the hour will be there.
Day and night
I am waiting
I never give up hope.

Somewhere in the world
there is a little piece of luck
and that’s what I dream in every moment
somewhere in the world
there’s a little bit of happiness
I have been dreaming of that
for a long, long time.

If I knew, where it was,
then I’d go out into the world,
Because only once
I want to be happy more than
anything else.

 Somewhere in the world
there’s a path to heaven.
Somewhere, somehow, sometime.

 

 Helena Araújo vive em Berlim e é autora do blogue Dois Dedos de Conversa, onde este texto foi inicialmente publicado.

 

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