
Durante a cerimónia, Maria Emília Brederode Santos desafiou as universidades a “repensar o seu papel na sociedade, a valorizar o seu contributo na defesa da justiça social e não na legitimação das desigualdades”. Foto © Sara Pereira.
Maria Emília Brederode Santos é uma mulher de liberdade. Foi esta a mensagem que se destacou do discurso de elogio proferido pelo professor José Ornelas na cerimónia de atribuição do doutoramento honoris causa, pelo ISPA – Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida, a Maria Emília Brederode Santos. Sala cheia e muitos aplausos, para homenagear esta grande humanista com uma vida política, social e cultural intensa.
Num percurso de vida fascinante, comprometido, atento e inquieto, é a liberdade, sua, dos outros e do seu país a principal luta de Maria Emília Brederode Santos. Porque é preciso lutar sempre pela liberdade, mesmo quando já a conquistámos, diz-nos. E é a liberdade, o pensamento e a expressão livre que também reivindica para os estudantes, desde os mais pequenos aos universitários.
A educação esteve sempre no centro do seu trabalho e da sua vida. Inspirada pela experiência educativa democrática em Boston, nos EUA, num período ainda de ditadura em Portugal, cedo se apercebeu do que a educação podia fazer por um país ou do que um país podia fazer com a educação. A inovação pedagógica, a atenção ao que se aprende fora da escola, a aprendizagem a partir de projetos educativos participativos são dimensões que caracterizam a sua conceção de educação e de escola. É neste contexto que aposta e defende a literacia dos média nas escolas como uma via para o desenvolvimento da cidadania democrática.
A cidadania “de todos os habitantes da escola”, a igualdade de oportunidades de aprendizagem, a inclusão social (e agora também digital), a justiça social, o direito à educação, a construção de uma escola para todos, que elimine ou diminua as desigualdades sociais, são algumas das suas lutas e, como tal, são também o seu grande legado para a educação em Portugal.
Este legado estende-se à educação informal, sobretudo à educação para e pelos média. Nos anos 90, chamou a atenção para a importância da televisão na vida das crianças e o quanto elas aprendiam com este meio. José Ornelas salientou, no seu discurso, o papel de Maria Emília enquanto diretora pedagógica de Rua Sésamo, um programa televisivo de origem norte-americana adaptado para o contexto português e transmitido pela RTP a partir de finais dos anos 80.
A reflexão crítica, o pensamento inovador, a elegância da forma de ser, de estar e de dizer são qualidades que nos inspiram e interpelam.

Trabalhou, no pós-revolução, no Instituto de Tecnologia Educativa, que lhe permitiu experimentar a inovação pedagógica e a formação de professores, tirando partido dos recursos técnicos e mediáticos. Essa linha manteve-a até hoje e teve certamente um ponto alto na sua passagem pela RTP, não apenas nas equipas de produção e realização de programas para e com crianças, mas também nas responsabilidades que teve no departamento que preparava as grelhas de programação.
Recordámos ainda um testemunho que deu, um dia, na Universidade do Minho, ao referir-se às táticas que por vezes era preciso ter para incluir séries de elevado valor cultural e educativo nos pacotes que estavam disponíveis nos mercados e certames internacionais de programas televisivos.
Mas o que importa destacar é algo de que provavelmente poucos têm consciência: foram várias as gerações de crianças que aprenderam a ler com o programa Rua Sésamo, num país ainda muito marcado pela ditadura e com uma educação pré-escolar muito incipiente. A este programa seguiram-se outros: Jardim da Celeste, Poemas Pintados, Aqui há Gato, produções televisivas para crianças que caracterizaram uma era de ouro da programação para a infância da estação de serviço público de televisão. Em todos houve, direta e indiretamente, a mão, o gosto e o espírito inovador de Maria Emília Brederode.
Essa ligação aos média como especialista em inovação esteve igualmente presente como colunista, como diretora das revistas Rua Sésamo (publicada nos anos 80 e 90 pela RTP) e Noesis, do Ministério da Educação, como responsável editorial (do espaço semanal Página da Educação que alimentou durante dez anos no Diário de Notícias, com José Carlos Abrantes) e, ainda hoje, no espaço sobre Inquietações Pedagógicas, que alimenta no Jornal de Letras.
À frente do Instituto de Inovação Educacional nos anos finais do século XX e nos dois iniciais do presente século, bateu-se pela criação de políticas tendentes a favorecer iniciativas inovadoras das escolas, designadamente no já referido campo da educação para a literacia mediática, mas também no campo artístico.
A atenção dada ao ensino artístico, que era já visível em algumas experiências que ensaiou na RTP e mesmo antes, permite compreender que apareça, no seu currículo, como presidente da Associação Portuguesa de Intervenção Artística e de Educação pela Arte e presidente da Comissão de Avaliação da Escola Superior de Educação pela Arte.
Encontramo-la igualmente em trabalhos colaborativos em mais de uma área da Educação para a Cidadania e a representar o Ministério da Educação na Comissão Nacional para a Educação em matéria de Direitos Humanos (que evocou os 50 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Década das Nações Unidas para a Educação dos Direitos Humanos), de 1998 a 2004.

O seu lado atento às mudanças leva-a a publicar na Noesis, um dossiê dedicado ao tema Educar para o Desenvolvimento Sustentável. Isto aconteceu em 2010, uns bons anos antes da instituição pela ONU de grandes objetivos para as políticas mundiais neste domínio. Num pequeno texto então por ela assinado, intitulado O terceiro D, alusivo ao Desenvolvimento, ao lado da Descolonização e da Democracia do programa dos militares de Abril, ela escrevia, a dado passo:
“Demo-nos conta de que o desenvolvimento económico era necessário para que houvesse um desenvolvimento cultural, educativo e da qualidade de vida da sociedade, mas que também só era possível se houvesse esse outro desenvolvimento mais qualitativo e centrado nas pessoas. Por outro lado, mundialmente, questionava-se o modelo de desenvolvimento económico assente no crescimento do consumo de energia e recursos naturais. (…) O conceito de ‘desenvolvimento sustentável’ parece conseguir ultrapassar estas contradições e harmonizar o desenvolvimento económico e a conservação ambiental, o crescimento económico e o desenvolvimento social, cultural, educativo, o global e o local, a acção a nível da ONU, dos países e dos indivíduos. Ora se há aprendizagem em que a escola se envolveu foi na educação ambiental. (…) Trata-se agora de dar mais um passo. De combinarmos esta educação para a protecção do ambiente com as competências necessárias ao desenvolvimento (o empreendedorismo, a criatividade e a capacidade de inovar, correr riscos e tomar decisões …); a consciência individual com o conhecimento mundial; a capacitação da criança a nível local com a sua capacitação como “cidadã do Mundo”.
Não é, assim, de estranhar que, numa altura da vida em que Maria Emília poderia estar a gozar a aposentação, a Assembleia da República tenha entendido convidá-la para (e ela tenha aceite) exercer o cargo de presidente do Conselho Nacional de Educação, a grande instância de debate, de conselho e de proposição, onde estão reunidos representantes de todos os atores educativos.
Esta mulher e cidadã, que se diz “pacífica”, que “não gosta de gente agressiva”, que “não é muito radical” nem gosta de “grandes ruturas”, gosta, no entanto, de “questionar tudo, de interrogar tudo, de estar aberta a diferentes perspetivas e de pôr tudo em causa”. Aprendeu a fazer isso, incentivou outros – pessoas e instituições – a seguir esse caminho e continua a fazê-lo, como no próprio ato de doutoramento honoris causa mostrou. Por exemplo, ao desafiar as universidades a “repensar o seu papel na sociedade, a valorizar o seu contributo na defesa da justiça social e não na legitimação das desigualdades”.
Este doutoramento é um justo reconhecimento, na linha de prémios e condecorações que já obteve. Mas o reconhecimento deveria ir mais longe e promover o conhecimento e a difusão do pensamento e ação de Maria Emília Brederode Santos. Temos, como país, bastante a aprender com as sementes que ela lançou.