Marie-Hélène Mathieu, 90 anos: um coração transformado diante da diferença

Marie-Hélène Mathieu. Foto: Direitos reservados
Nascida em França, a 4 de Julho de 1929, numa família numerosa – seis irmãos e muitos primos e tios que gostavam de se encontrar –, a infância de Marie-Hélène Mathieu é vivida no campo, em Tournus (na região da Borgonha, não muito longe de Taizé, no sudeste de França). Numa entrevista de há cerca de um ano à Radio Notre Dame, ela contava como a vida no campo a marcou: um dia, aos 5 anos, depois de uma grande trovoada, ela e os irmãos saíram para o campo e, de repente, viu um arco-íris de volta inteira e ficou fascinada. Perguntou o que era aquilo e os irmãos mais velhos contaram a história de Noé e da promessa de Deus de nunca mais enviar o dilúvio. Isso tocou-a profundamente e despertou uma enorme confiança num Deus que faz maravilhas e em quem se pode confiar.
Outro episódio que marcou a sua vida foi o seu encontro com Alice. Quando tinha 11 anos, na escola havia uma jovem com deficiência de 17/18 anos, de quem todos faziam troça: estava sempre na última carteira, tinha um ar estranho e não reagia muito ao que se passava à sua volta. Um dia que a humilhação foi mais agressiva, Marie-Hélène olhou para trás e viu que Alice estava a chorar. Era a primeira vez que Marie-Hélène se dava conta de que aquela jovem estranha tinha sentimentos. Ficou impressionada. Gostava de a poder consolar mas sentia-se totalmente impotente. Nunca tinha falado com ela e não sabia como entrar em diálogo. Pensou para si que, quando crescesse, gostaria de aprender a consolar pessoas como a Alice.
“A culpa é de nós todos, que os deixámos sós”
Marie-Hélène Mathieu estudou e formou-se como educadora especializada. Contactava com pais de crianças com deficiências graves e recorda um caso preciso em que os pais estavam em enorme sofrimento. Os médicos tinham-lhes dito: “Não há nada a fazer. Ponham-no numa casa onde o tratem e façam outro filho.” Ela sentiu esta afirmação como um desafio terrível: de não deixar os pais sozinhos com as suas dificuldades reais. Em 1962, houve um célebre processo em Liège (Bélgica), em que, com a ajuda de um médico, uns pais mataram a sua filha que tinha nascido com uma deficiência. Foram condenados num tribunal de primeira instância mas, depois do recurso, foram ilibados e mesmo aclamados. A violência do acontecimento provocou um grande choque nas sociedades belga e francesa. Marie-Hélène sentiu fortemente: “Não são eles que têm a culpa – somos nós todos, que os deixámos sós!”
É neste quadro que, em 1963, Marie-Hélène cria o OCH – Serviço Cristão para as Pessoas com Deficiência. Neste serviço recebe os pais que procuram respostas para os seus filhos mas que, sobretudo, precisam de ser escutados. Cria um serviço de escuta e aconselhamento em Paris e em Lourdes.
Inicia um ciclo designado Conferências/Encontros e, com a participação de alguns pais, cria a revista Ombres et Lumière (“Sombras e Luz”) em 1968. É a escuta dos pais, que se sentem socialmente excluídos por causa dos seus filhos diferentes, que motiva Marie-Hélène a agir. Dá-lhes voz através da revista que consegue chegar a muitas pessoas mesmo sem ligação directa às questões da deficiência.
Profundamente cristã, enraizada na Igreja Católica, ela considera um escândalo o desprezo e o desinvestimento nos mais pequeninos. Refere sempre citando Jesus no Evangelho: “O que fizeres ao mais pequenino, é a Mim que o fazes”.
Da dinâmica do OCH nascem várias iniciativas:
Em 1971 funda com Jean Vanier o Movimento Fé e Luz, que nasce da escuta de um casal com dois filhos com deficiências graves que pretendia ir a Lourdes integrado na peregrinação diocesana, mas a quem é dito que os meninos não podiam ir, porque iriam incomodar toda a gente e não perceberiam nada do que se passaria. O casal foi pelos seus próprios meios mas, em Lourdes, sentiu que os seus filhos não eram bem-vindos.
Profundamente escandalizada com a situação, Marie-Hélène fala com Jean Vanier com quem colaborava regularmente no âmbito da Arca. Com os pais da criança, surge a ideia de organizar uma grande peregrinação para famílias com filhos com deficiência. Propõe-se uma preparação de três anos em pequenas comunidades de famílias, seus filhos com deficiência e jovens amigos. Os encontros mensais seriam de celebração, amizade e oração.
Na Páscoa de 1971 realiza-se a peregrinação em ambiente de grande festa e alegria e os participantes dizem que não querem ficar por ali: querem continuar a encontrar-se e aprofundar a experiência que ali viveram. Jean Vanier responde-lhes que façam o que o Espírito Santo lhes inspirar e o Movimento nasce.
O Movimento nasceu logo internacional e ecuménico. Na peregrinação fundadora participam 12 mil pessoas idas de 15 países. Hoje em dia, o Fé e Luz está presente em 86 países, conta com 1420 comunidades repartidas em 53 províncias nos cinco continentes, com 38 línguas diferentes.

Jean Vanier, con-fundador do Fé e Luz, com Marie-Hélène Mathieu. Foto © Filipe Teixeira
“Quando nos aproximamos da pessoa, transforma-se o nosso coração”
Marie-Hélène afirma: a rejeição diante de uma pessoa muito diferente é normal, mas sempre que aceitamos aproximar-nos dela, transforma-se o nosso coração. É este o testemunho dos jovens que fazem parte das comunidades Fé e Luz.
Das iniciativas que desenvolve em torno da revista e das Conferências/Encontros nasce em 1982 um Movimento para as famílias com pessoas com doença mental. Chamou-lhe Relais d’Amitié et prière[1], actualmente designado Relais Amitié Esperance[2]. É, mais uma vez, Marie-Hélène que suscita o encontro das pessoas que vivem a problemática, sempre à luz da esperança que vem do amor que Deus tem por aqueles pequeninos, em relação aos quais não é óbvio nem directo que se descubra a beleza escondida e o sentido das suas vidas. A partilha e a oração em grupo ajuda. Há grupos deste movimento por toda a França.
No fim dos anos 1990, após a publicação de um estudo sobre as sequelas dos traumatismos cranianos, Marie-Hélène promove um encontro das famílias e outros interessados. Nasce a Associação Simon de Cyrene (Simão de Cirene), actualmente Federação, que instala e anima casas partilhadas de pequena dimensão, nos centros das cidades, onde vivem pessoas sem deficiência junto com outras que adquiriram deficiências durante as suas vidas, por acidentes, AVCs ou outras etiologias. O funcionamento dos lares é inspirado nos da Arca, fundada por Jean Vanier e o seu lema é: Juntos, demos um novo sentido às nossas vidas. Está em franca expansão em França.
Marie-Hélène não teve nenhum familiar com deficiência mas entregou e continua a entregar a sua vida a tentar revelar a todos e em especial às Igrejas cristãs, onde tem as suas raízes, que estas pessoas são uma pedra angular das sociedades e da Igreja; que pertencem à comunidade e devem viver no meio de todos, porque tornam quem vive à sua volta pessoas mais ricas e mais humanas.
Uma nota pessoal: conheci Marie-Hélène no início dos anos 1990, por ter recorrido ao OCH quando procurava com a família, em Paris, apoio para o meu filho com deficiência, durante o tempo que o meu marido estaria lá a trabalhar, com uma bolsa. Acolheu-me com muito carinho e deu-me informações muito precisas. Acabei por perceber que esse projecto não se podia concretizar. Em 1996, voltei a encontrá-la num retiro orientado por Jean Vanier no Porto.
A direcção do Movimento reuniu no Porto por essa ocasião. Reconheceu-me logo e lembrava-se do meu nome, o que me impressionou muito. Nessa altura, eu estava já envolvida na Comunidade de Évora, do movimento Fé e Luz.
Obrigada, querida Marie-Hèlène, e muitos parabéns, neste 4 de Julho, pelos 90 anos de que todos beneficiamos tanto!
Notas
[1]Relais tem o sentido de uma paragem para descanso, numa longa viagem stressante; proponho traduzir por “Paragem” de Amizade e Oração – uma luz na noite”.
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