
Foto © Daniel Gutko / Unsplash
Possuem-nos a terra
Querem-nos sem plantas
Não podemos criar raízes
Cortam-nos os pés
E no quarto
Um quarto de corpo – o coração nas mãos –
Até ver
Vender.
E nós, Igreja, de venda?
A nós que nos pagam a dívida, o dízimo, a renda
Para habitarem no Céu.
A nós que nos pagam a propina
Para serem talhantes de faca fina
Manterem a bata branca
Rezarem pelo finado
Quando a sua casa entrar para o mercado
Porque não a tinha herdado,
Para brincar ao assistencialismo
E chamarem de ativismo comunismo
Essa outra gente indecente
Que vai berrar para as ruas,
Porque a mão invisível,
Lhes agarrou a garganta
E expulsou das cidades
Das universidades
Da casa
Da justiça
E ainda lhes diz que têm preguiça
E vivem à custa do RSI,
(Que no mês passado subiu para 209,11euros
e perfaz um terço da mensalidade de muitos dos colégios católicos).
Andamos a descer o Chiado em Caminhadas pela Vida,
Mas será que queremos que a Vida caminhe,
Que os direitos humanos não sejam trocados pelos direitos do mercado,
Que a nossa saúde, a nossa educação, a nossa habitação,
O conforto, a beleza, a paz, o nosso pão,
Não estejam nas mãos de uma empresa?
Será que queremos entender que viver em camaratas em quartos partilhados com desconhecidos,
Não é o mesmo que os campos de férias, a Missão País
ou o voluntariado em África ou na América Latina naquela pausa adolescente,
Que o discurso da paciência não é inocente,
Que a frustração da luta é não ter fruto mas luto,
Que há quem seja barrada à entrada do ensino superior, não pelo mérito,
Mas pelo crédito (lógica com ligeiras alterações na Universidade Católica),
Que vender o corpo sete ou oito dias por semana em dois trabalhos
(prostituição que não choca)
Não permite ter uma casa,
(Falam-nos em crescer e multiplicar, mas que lar lhes dar, como os alimentar, como a creche pagar?)
Que há quem viva com o agressor porque não há lugar para ir,
Que há quem tenha de escolher entre a medicação e a renda,
Que há mais de 10 pessoas num T1 a dormir,
Que há mães que permanecem acordadas durante a noite
Porque temem que os ratos mordam nas suas bebés,
Que há tendas nas avenidas
E quartos exteriores e sem paredes,
Que há quartos interiores e sem janela,
Porque a luz e o ar são especulação,
Que estas pessoas não trazem a cruz de prata ao peito
Mas sim o peito em cruz,
Que a sua vida é que tem voz de homília?
Este medo de escandalizar o poder
Não será a verdadeira ocasião de escândalo?
Este medo das palavras,
este medo das famílias,
Não as anónimas, mas as de nome,
Este medo de que nos revirem as bancas (afinal, de quem são?),
De que comam crianças ao pequeno-almoço*,
E não de que as crianças não tenham o que comer ao pequeno-almoço,
De que aquelas a quem dás comida se sentem à tua mesa,
Esta rejeição de descer as ruas ombro a ombro mão a mão,
E do suor se confundir,
Este medo da Revolução,
Este medo de que a Vida mude
E a casa estremeça a partir dos fundamentos,
Que os poderosos sejam derrubados de seus tronos
E os ricos despedidos de mãos vazias.
Igreja, Igreja, enraizada na libertação dos escravos do Egipto,
Não podeis servir nem fingir a dois senhores,
Não podeis não te zangar,
Não podeis esquecer,
Não podeis não ver
Que estais ocupada.
(*Expressão popularizada na campanha anticomunista do Estado Novo.)
Este texto surge como uma reflexão que preciso de fazer e partilhar, depois de me ter sido dito, por uma pessoa que pertence à hierarquia da Igreja, que tinha de escolher entre seguir esta instituição ou “outras ideologias” incompatíveis. Esta bifurcação foi-me apresentada depois de ter falado da importância dos movimentos cristãos participarem em acções populares cuja procura se encontra com o Evangelho.
No dia 1 de Abril, na manifestação “Casas para Viver” que reclamava o direito à habitação, não vi nenhum movimento católico, nem nenhum discurso oficial ou não, prévio sobre esta mobilização, ou simplesmente para a tomada de consciência sobre este problema e para a responsabilidade que, enquanto cristãs e cristãos, temos para com todas as realidades da Vida humana e não-humana.
Lamento que a nossa presença nas ruas, a lutar pela libertação das opressões, junto de quem as vive no corpo, se limite à Caminhada pela Vida contra a legalização do aborto e da eutanásia, quando ser pró-vida passa pelo reconhecimento da sua dignidade através, inclusive e incontornavelmente, do fim da precariedade, produzida por um sistema económico e social capitalista. Não se fala sobre a teologia da libertação, em Portugal. À luz do Evangelho não consigo conceber como não temos uma atitude firme e clara de rejeição deste modelo, como se fica tão chocado (sim, escrevo no masculino este adjectivo, porque a Igreja institucional é machista) quando alguém se diz anti-capitalista.
Padre – dissera o Dono da Casa –, eu pensava que o seu ofício era ocupar-se de rezas e não de contas. Os problemas morais pertencem-lhe. Os problemas práticos são comigo. Peço-lhe que deixe César ocupar-se do que é de César. Eu na sua igreja não mando: só assisto e apoio. O problema que estamos a discutir é meu, é do mundo, é um problema material e prático.
– Da nossa própria fome – respondeu o Padre de Varzim – podemos dizer que é um problema material e prático. A fome dos outros é um problema moral.”
(In “O Jantar do Bispo”, Contos Exemplares, 1970, Sophia de Mello Breyner Andresen)
Raquel Luiz descreve-se como feminista e anticapitalista. É formada em Ciências da Comunicação e Estudos Portugueses. Neste momento, trabalha na área da Educação. Pertence ao movimento Sopro e ao Laboratório de Teatro e Política.