Na sequência das eleições legislativas em Portugal, no final de Janeiro, o 7MARGENS pediu a alguns cristãos empenhados na ação política ou com reflexão sobre o tema que falassem sobre razões do seu compromisso. Depois do ex-deputado do Bloco de Esquerda, José Manuel Pureza, publicamos agora um texto de Adriano Moreira, professor universitário jubilado e antigo líder do CDS. O texto corresponde a uma intervenção feita em 2018 mas que o autor considera uma síntese do seu pensamento nesta área.

Francisco rodeado de crianças na ilha de Lesbos (Grécia): este Papa “assumiu a dor moral, e a obrigação de consagrado, de cumprir o dever de reconhecer a intolerável situação de ‘um mundo de desigualdades’”. Foto © Vatican Media.
Talvez não seja despropositado, no sentido de compreender a intervenção deste Papa que os cardeais foram buscar ao “fim do mundo”, recordar a data histórica em que Ernest Renan, quando a Europa se considerava “a luz do mundo”, no seu L’avenir de la science, de 1848, escreveu: “é sobretudo sob a forma religiosa que o estado velou até agora os interesses suprassensíveis da humanidade. Mas a partir do momento em que a religiosidade do homem venha a exercer-se sob a forma puramente científica e racional, tudo o que o estado concedia antes ao exercício religioso será por direito entregue à ciência, única religião definitiva”. O Papa Pio IX, atento à circunstância, não omitiu responder ao analista de tão histórico anúncio, denunciando “os erros modernos” na Sillabus de 1864, com que acompanhou a encíclica Quanta Cura, de 1864.
Sugiro este ponto de partida porque também quanto ao exercício de cada um dos bispos de Roma, o exame da circunstância é indispensável, até para enriquecer a tradição de analisar e avaliar as diferenças da intervenção de cada um. E o nosso mundo globalista, que podemos praticamente, no que tem de desafiante, considerar desde o fim da Guerra Fria, um fim demorado a partir do relatório secreto de Khrushchev ao congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1956, implicou uma frequente mudança de conjuntura.
Isto evidenciado quando o próprio projeto da Constituição europeia, como foi tentado chamar-lhe, recusou invocar o passado cristão da Europa, que Luís de Camões considerou ser o eixo da sua identidade, ao proclamar Portugal “cabeça da Europa toda”. Lembrando a iluminação de João XXIII ao convocar o II concílio do Vaticano, para atualizar a perceção do novo mundo em mudança, a intervenção lúcida de Paulo VI, e finalmente a eleição do atual santo Papa João Paulo II à cátedra de Roma, não podemos talvez deixar de lembrar-nos, quanto às suas intervenções, do ensinamento de Ortega, sobre a natureza histórica do homem, pela relação com a sua circunstância.
No que toca à Europa, a primeira circunstância talvez inesperada foi que a irrelevância do cristianismo assumido quanto à frustrada constituição, se verifica quando o espaço, que foi o da circunstância de João Paulo II, e que dominou a sua intervenção, tinha vencido a circunstância que Heidegger, na sua Introdução à Metafísica, descreveu nestes termos: “esta Europa, em atroz cegueira e sempre pronta para se apunhalar a si mesma, jaz hoje sob a grande tenaz formada pela Rússia, de um lado, e pela América, do outro. Todavia, e numa perspetiva metafísica, a Rússia e a América são a mesma coisa: a mesma fome desesperada de técnica e da organização abstrata do homem, a decadência espiritual é tal que sobre os povos da terra impende a ameaça de se perder a última força do espírito, aquela que permitiria ver e apreciar a decadência como tal “pensada em relação com o destino do ser”.
Independentemente da especificidade da posição filosófica do autor, o texto faz lembrar a previsão citada do aviso de Ernest Renan: o Papa Francisco viveu a tragédia política da evolução da América Latina em geral, e da sua Argentina em particular, o desafio da Teologia de Libertação, a perda do estado de direito na sua própria terra pátria, a crueldade do poder político, e sobretudo, entre mais ameaças, o crescimento do freudismo a sustentar que “a psicanálise revelou-nos uma intensa conexão entre o complexo do pai e a crença em Deus, “o mal estar da civilização”, e por isso a religião como ilusão; ao mesmo tempo, Habermas, o mais destacado representante da escola de Frankfurt, atestava que “na consciência tecnocrática não se reflete a anulação de uma conexão ética, mas a repressão da eticidade como categoria das relações vitais em geral”.
Para tornar a circunstância de João Paulo II mais angustiante, a angústia que levou ao esgotamento o Papa emérito, foi nesta cidade de Lisboa, no “Portugal cabeça da Europa toda”, identificada pelo evangelho, que foi celebrada, surpreendentemente no Panteão Nacional, o triunfo da inteligência artificial, isto é, da ciência sem consciência, orientação bem demonstrada pela progressiva diminuição da atenção prestada pelos governos às humanidades.
Não “meu pai”, mas “Pai Nosso”
Ao mesmo tempo, num ambiente em que o articulado sistema de informação do globalismo nos aconselha voltar à leitura das denúncias de Lutero, a inversão dos preceitos de boa conduta e governo de responsáveis atinge a autenticidade da sua articulação entre a visão histórica de Jesus e a fé em Jesus, pelo que as minorias cristãs, como aconteceu na Etiópia, são exemplo da crueldade crescente, traidora do pregado “mundo único”, e em que Raimon Panikkar se pergunta pela relação entre muita da cristologia em que se viveu para conquistar o mundo, quando “a situação atual do mundo no iniciar do século XXI é tão grave que podemos permitirmo-nos perder-nos em polémicas políticas internas ou problemas de ordem menor (sacerdócio para as mulheres, sacramentos protestantes, ecumenismo, moral sexual, etc.). O mundo está atravessando uma crise humana e ecológica de dimensões planetárias. Setenta e cinco por cento da sua população vive em condições infra-humanas; milhares de crianças morrem cada dia devido a injustiças cometidas pelos homens; desde 1945 as guerras matam mais de mil e duzentas pessoas por dia; a intolerância religiosa está todavia muito enraizada em todo o planeta e o conflito entre pessoas religiosas segue estando fortemente exacerbado”. Estas são as tremendas sínteses do seu “A Christophany For Our Time”, escrito já em 1992, no Theology Digest de 30 de janeiro de 1992.
Foi neste ambiente que, tendo vivido uma circunstância em que todos estes factos se desenvolveram desafiantes, leva a que não andará longe da exatidão que, sendo ele membro de uma das mais prestigiadas ordens, que é a dos jesuítas, o levassem a assumir o nome de Francisco, e julgo que tendo sempre presentes dois princípios: que Cristo, na única oração que nos deixou, invocou não “meu pai”, mas “Pai Nosso”, isto é, de todos os seres humanos, sem distinção de raça, de cultura, de credo, ou falta dele, como entre nós insiste o padre dominicano José Nunes; por outro lado, assumiu a dor moral, e a obrigação de consagrado, de cumprir o dever de reconhecer a intolerável situação de “um mundo de desigualdades” onde de facto ainda pesam traços de escravatura, de colonização por soberanias exploratórias, com uma sociedade internacional fortemente hierarquizada, a violência nas estruturas, na quebra da paz pelas armas, com prometido “desenvolvimento sustentado como novo nome da paz”, mas com a injustiça da distribuição dos recursos e a consequência de os pobres morrerem mais cedo, os pobres sofrendo por acréscimo da degradação do ambiente, com divergências políticas severas e inquietantes em todos os continentes, até combates armados nos países latino-americanos, intransigências entre os centros ocidentais, com, simbolicamente, Jerusalém e as suas gentes vítimas de uma sucessão de intoleráveis decisões e ações nacionais e internacionais.
Fazer o bem ao sábado, sem esperar por segunda-feira

Numa das suas famosas entrevistas, declarou que, sendo bispo de Buenos Aires, um sábado lhe apareceu uma mãe, com uma criança ao colo, pedindo-lhe ajuda porque o filho estava a morrer de fome. Ele respondeu-lhe que era sábado, mas que na segunda-feira lhe teria resolvido o sério problema. A mulher disse-lhe – mas o meu filho está a morrer de fome neste sábado, não é na segunda-feira. Ele resolveu-lhe imediatamente o problema e, pela conduta, ensinou a todos que em nenhum sábado se pode ficar à espera de “segunda-feira”. Não necessitou de meditar sobre as teorias, só como exemplo, de David Ricardo e Marx sobre a “relação entre o crescimento económico e a distribuição dos ganhos”, assumiu a obrigação de responder, como entre nós explicou Anselmo Borges, “aos desafios da Igreja e ao mundo”, descurando a segurança pessoal porque o impedia de estar junto do povo, e a grandeza do estado-Vaticano por incompatível com o seu franciscanismo. Não necessitou, para assumir e responder aos alarmes resultantes, por exemplo, da discutida informação de Piketty levado a chamar “os cidadãos ao voto”, para enfrentar as injustiças de O Capital no Século XXI”, para assumir o que Amin Maalouf chamou El Desajuste del Mundo (2009), nem do alarmante e tão mundializado estudo de Charles Derber sobre “a maioria deserdada”, porque sabe que “Cristo não sabia nada de finanças, nem consta que tivesse biblioteca”: a piedade, a misericórdia, são alicerces suficientes para a intervenção, que o leva a seguir o conselho de Francis Bacon, já no século XVI, a recordar que “quem não aplica novos remédios espera novos males porque o tempo é o maior dos inovadores”, e ele pretende levar o remédio da voz da Igreja a todo o mundo, no sábado, sem esperar pela segunda-feira.
Procura, enfim, que a Igreja seja uma comunidade de homens e mulheres que procuram ser bons discípulos do Evangelho, explicou o prefeito Dario E. Viganò. E visto o ataque que a Igreja sofre, infelizmente por condutas de servidores desviados e inclusivamente erradamente protegidos, concordo com Anselmo Borges quando, no seu Francisco – Desafios à Igreja e ao Mundo (2017), enumerando os desafios para o século XXI, diz que o desafio essencial é a conversão de todos os membros ao evangelho, “começando pelos que estão mais alto: papa, bispos, cardeais, padres, acreditar em Jesus e tentar segui-lo”. Em defesa de uma “ciência com consciência”, não desejo terminar sem referir que na fundação da ONU não ficou esquecida, como no Tratado de Lisboa, a importância da religião, também não esquecendo a variedade das crenças e culturas, que todos se encontram representadas na assembleia geral. Por isso foi organizada uma pequena sala despida, com simples bancos encostados à parede, uma pedra translúcida à maneira de altar, e um raio de luz vindo do alto sobre a pedra de mármore. Chamava-se sala de meditação para todas as religiões. O esforço, sem medida, do Papa Francisco, no seguimento das iniciativas inesquecíveis da nova mensagem de Assis de João Paulo II, e que tão úteis foram a Moçambique, tem sido o da aproximação, diálogo e solidariedade das diversas crenças em face dos perigos a que o globalismo nos conduziu. Por isso me atrevi a escrever-lhe uma carta em 2 de fevereiro de 2015 que é a seguinte:
Um conselho das religiões
Quando da celebração do centenário do Centro Académico da Democracia Cristã, de Coimbra, no ano passado [2014], pediram-me para ali fazer uma conferência relacionada com a situação atual, depois de tantas décadas, passando em revista os factos mais relevantes desse longo período. Mais uma vez me feriu a atenção que estavam a manifestar-se sinais claros da previsão de Malraux sobre o século XXI, “que será religioso ou não será”. E por isso, naquela palestra, sugeri que seria necessário desenvolver uma iniciativa que julgo devida ao grande secretário geral da ONU, que foi Dag Hammarskjöld, ao criar uma sala singela para meditação de todas as religiões. Também foi importante ter reparado, há anos, que o principal fator de gravidade do terrorismo, tornado evidente no ataque às torres gémeas de Nova Iorque, foi que a Al-Qaeda tinha incluído valores religiosos no seu conceito estratégico. O estado do mundo neste 2015, com um aviso alarmante no massacre de Paris, voltou a impor a evidência de que existem nesta data guerras “nos quatros cantos do mundo”, que volta de novo, e com nova face, a evidenciar-se a velha linha do Cabo ao Cairo, que a área ocidental está desorientada com a multiplicação de conflitos que não cabem nos conceitos da estratégia clássicos, falando-se em guerras entre estados, guerras interiores aos estados, guerras alheias aos estados, com um cortejo aterrador de crimes contra a humanidade, mortandade de crianças, destruição de estruturas seculares, ou ainda as situações que não são de guerra nem de paz.
As últimas intervenções de Vossa Santidade, quer pela palavra, quer pela presença, levam-me ao atrevimento de lhe enviar, e repetir, a sugestão que fiz na reunião de Coimbra: Na ONU, em perda de autoridade, deveria ser criado, ao lado dos órgãos institucionais da carta, um conselho das religiões, a estruturar segundo a experiência da ONU e a que tem sido ganha, sobretudo desde as reuniões de Assis, com as sucessivas iniciativas de encontros, conclusões, e ação, das igrejas a bem da paz. Se a Igreja Católica tomasse a iniciativa, com respeito institucional, enriqueceria utilmente a contribuição que lhe pertence na doutrinação da paz, designadamente tendo enriquecido, com mestres, o património imaterial da humanidade, tão descuidado e violado neste século sem bússola.”
Escutar mais a voz da ONU

O meu modesto, mas atrevido texto, foi pelo instinto de reagir, com uma eficaz defesa, para que seja mais escutada a voz da ONU, que não pode ser conduzida a presidir a uma real torre de babel, ela própria em desmoronamento. E também para lembrar, que sendo plural e vasta a quantidade de crenças representadas na ONU, ao abrigo de um texto exclusivamente escrito por ocidentais, falando pela primeira vez ao mundo, em liberdade, dos seus valores, foi apenas ao bispo de Roma, Papa dos católicos, que foi dirigido, pela quarta vez, o convite para discursar na assembleia geral. Primeiro Paulo VI, que ali deixou vincado o princípio de que “o desenvolvimento sustentado é o novo nome da paz”; depois João Paulo II, cuja vida, na martirizada Polónia, a nação pior estacionada da Europa, foi sobretudo condicionada pela ameaça expansionista do imperialismo soviético, por duas vezes acolhido na tribuna da assembleia; seguiu-se o corajoso Papa emérito pregando ali a autenticidade da relação entre o promulgado nos tratados e a ação; e finalmente o Papa Francisco, o que juntou a sabedoria dos jesuítas com a humildade dos franciscanos, para impedir que se consuma o modelo da “ciência sem consciência”, corolário do facto de a “Europa” ter deixado de ser “a luz do mundo”, de o Ocidente dar mostras de ter entrado no “outono” ao consentir que o “credo do mercado” vá substituindo e afastando o “credo dos valores”. Os inspirados textos da encíclica Laudato si’ sobre o esquecido preceito da ONU sobre a “terra casa comum dos homens”, a Amoris laetitia sobre a família, o esforço para levar a palavra a todas as latitudes, as múltiplas e incansáveis audiências, homilias, todas apelando à mobilização ética das instituições das sociedades civis, e, sobretudo, a inquietação sobre o legado que este mundo partilhado por linhas vermelhas e pontes desatualizadas, vai deixar à próxima geração.
Não sei por qual razão este tema me fez lembrar uma das frases históricas de Churchill comentando a Segunda Guerra Mundial: “este combate foi a primeira vez em que a palavra foi um instrumento de guerra”. O Papa Francisco veio lembrar que o poder da palavra pode vencer a palavra dos poderes, que assumiram a capacidade de destruir a terra pelo exercício de uma “ciência sem consciência”. Insiste sobre as dificuldades que enfrenta a ética e a tensão entre a religião e a prática maquiavélica que abandona até “cuidar da mãe terra”. A sua palavra, tem que ver, como diz a teóloga Ilia Dellio, com o facto, resumido por John Haugth, de que “os mundos intelectual e académico se estão tornando cada vez mais recetivos ao naturalismo científico, à crença de que a natureza é tudo o que existe, e que o método científico é a única forma confiável para a compreender”.
A resposta, como salientou Anselmo Borges, é que é “com amor e misericórdia” que Francisco enfrenta a situação, não querendo mas não temendo expor-se, demonstrar mais uma vez que a palavra, que pode ser uma “arma de guerra”, é para ele uma palavra de paz, usada sem medo dos riscos e das oposições. Como disse em 2 de outubro de 2016, “as religiões têm uma grande tarefa: acompanhar os homens, em busca do sentido da vida, ajudando-os a compreender que as limitadas capacidades do ser humano e os bens deste mundo se devem tornar absolutos”. Falava com o chefe dos muçulmanos do Cáucaso e com os representantes das comunidades religiosas do país, em Baku. Tinha seguramente presente que Jesus não tinha rezado “meu pai”, mas sim “Pai Nosso”.
Universidade Católica, 12/03/2018
Adriano Moreira é presidente do Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa e professor emérito da Universidade Técnica de Lisboa. Edição e subtítulos da responsabilidade do 7MARGENS.