
Paméla Groleau, que alega ser vítima do cardeal Marc Ouellet. Foto reproduzida do perfil da própria na rede Linkedin.
“Há mais de dois anos que luto contra uma instituição que, por meio de ameaças e intimidações, me tenta silenciar. Depois de tentar os processos internos de denúncia da Diocese de Quebeque e do Vaticano, recorri, no meu limite, à justiça civil. (…) Já não me chamo F. O meu nome é Paméla Groleau.”
Esta mulher, de 38 anos, cujo nome certamente não diz nada a quem lê o 7MARGENS, é nada mais nada menos do que a agente pastoral do Quebeque, no Canadá, que o cardeal Marc Ouellet anunciou, em dezembro último, ir processar por difamação. Paméla decidiu sair do anonimato durante um encontro que teve esta sexta-feira com jornalistas.
Com a denúncia que fez de agressão sexual por parte do cardeal Ouellet, quando este era arcebispo do Quebeque, Paméla exige da Igreja “justiça e transparência”, apostando, com a sua atitude de risco, em contribuir para “mudar a Igreja a partir do seu interior”.
O caso teve início no ano de 2008, como o 7MARGENS já contou em agosto passado. Na altura, era ela estagiária na diocese canadiana, quando participou num encontro em que esteve também o então arcebispo Ouellet. Os dois foram, a dado momento, apresentados e, horas mais tarde, estando Paméla sentada numa cadeira, Ouellet terá vindo por detrás e começou, a despropósito, a “massajar-lhe” os ombros. Conta que ficou petrificada com o que sentiu ser atrevimento e inconveniência, tendo depois desabafado com colegas. O comportamento do prelado repetiu-se noutras ocasiões e noutras partes do corpo da vítima. Tal era o sofrimento e a repulsa que começou a fazer o possível por evitar encontros em que soubesse que Ouellet iria estar presente.
Noutra altura, terá tido de se confrontar com comportamentos análogos do pároco da paróquia em que trabalhava, que também denunciou juntamente com o bispo.
Há dois anos, aproveitou o serviço diocesano de receção de queixas criado e fez a denúncia do padre. Quanto ao bispo que fora, entretanto, feito cardeal, tinha sido chamado para o Vaticano, onde ocupava e ainda ocupa o lugar de prefeito do Dicastério para os Bispos. A vítima foi então aconselhada a fazer a queixa diretamente ao Papa Francisco.
O Vaticano nomeou o padre jesuíta Jacques Servais para recolher informações que viriam a determinar a decisão do Papa de não avançar com qualquer processo, por considerar que os factos não o justificavam. Veio a saber-se, entretanto, que o padre em questão é um amigo e colaborador do cardeal Ouellet, nomeadamente nas atividades da Associação Lubac-Balthasar-Speyer, com sede em Roma, o que não contribuiu para a transparência das diligências.

O cardeal Marc Ouellet, prefeito da Congregação para os Bispos, decidiu processar a alegada vítima, acusando-a de difamação. Foto © Mazur_catholicnews.org.uk
Em face da situação, a vítima entendeu recorrer à justiça civil e, em finais de agosto último, o nome de Ouellet surgia numa lista de cerca de uma centena de padres, funcionários, e três bispos da diocese do Quebeque, que são objeto de uma ação coletiva por alegadas agressões sexuais praticadas entre 1942 e 2018.
É então que o cardeal decide processar aquela que, nesse processo, continuava a ser designada por “senhora F.”.
Ouellet invocou o facto de o seu nome ter surgido em meios de comunicação de todo o mundo envolvido em atos que ele nega terminantemente ter praticado.
A verdade é que, no plano eclesiástico, o padre por ela denunciado acabou por ser, entretanto, suspenso, ao passo que o cardeal foi ilibado.
No encontro desta sexta-feira com um grupo de jornalistas, Paméla Groleau divulgou uma declaração, integralmente publicada pela revista católica Présence, em que justifica por que razão manteve o anonimato nestes dois anos e explicita os motivos que a levam, agora, a dar a cara.
Dos casos de agressão e abuso com adultos, sobretudo mulheres, que começam a surgir cada vez mais, este distingue-se por a vítima assumir-se publicamente e, não menos relevante, por ainda acreditar na Igreja e gostar de, um dia, a ver ao lado dos mais fracos e feridos.
Paméla Groleau continua a trabalhar como agente pastoral numa diocese canadiana cujo nome preferiu não referir. Mas está consciente de que, ao assumir publicamente a denúncia do cardeal Ouellet, superior hierárquico do seu bispo, este poderá sentir-se pressionado a despedi-la.
“Estou a travar esta luta para recuperar a dignidade que me foi arrancada”, e porque “ainda acredito na relevância” da Igreja Católica, diz ela, citada pelo jornal La Presse.
Por sua vez, a advogada do escritório que defende grande parte dos casos da ação coletiva acrescenta: “Faz parte de seu processo de cura […] ser reconhecida como vítima.”
Contudo, ao longo destes anos, disse aos jornalistas ter recebido ameaças anónimas e ter sido pressionada para se retirar da ação coletiva.
Por sua vez, o escritório que representa o cardeal, afirma no processo de difamação posto a Paméla Groleau, que, “mesmo que tomemos como provados os fatos alegados pela senhora”, que são “categoricamente negados”, eles “nunca poderiam ser qualificados como agressão sexual”.
A advogada da vítima anuncia ir contestar esse processo de difamação e que está ansiosa “por poder interrogar o Sr. Ouellet”.
Para já, está marcado para o fim deste mês um encontro da vítima com representantes da diocese do Quebeque que pretendem que se consiga “um acordo amigável”. Mas tal acordo nunca poderá passar por retirar o nome do cardeal Marc Ouellet da lista da ação coletiva em processo civil, refere a parte da vítima.
Já não sou F. Sou Paméla Groleau.
Paméla Groleau: “Travo esta luta porque quero ter orgulho na minha instituição. Sonho em vê-la vir em defesa dos mais fracos, dos empobrecidos, dos feridos.” Foto reproduzida do perfil da própria na rede Twitter.
A agente pastoral até aqui identificada como “F.” decidiu deixar o anonimato. Paméla Groleau, que integra uma ação coletiva contra a arquidiocese do Quebeque, está a ser processada pelo cardeal, prefeito do Dicastério para os Bispos, do Vaticano. A partir do texto integral publicado na Présence, o 7MARGENS transcreve a seguir o seu depoimento.
Há mais de dois anos luto contra uma instituição que, por meio de ameaças e intimidações, tenta silenciar-me. Depois de tentar os processos internos de denúncia da Diocese do Quebeque e do Vaticano, recorri, no meu limite, à justiça civil.
Mantive o meu anonimato até hoje para proteger os meus entes queridos, a minha família, o meu trabalho e também para preservar a minha saúde, que foi posta à prova por todos os procedimentos.
Faço esta luta por mim, mas também por todas as vítimas do clero que há décadas procuram ser ouvidas e reconhecidas.
É também a luta de todos os cristãos que se sentem mal com a sua Igreja e que desejam vê-la expurgada de abusos de toda a espécie, para que recupere a sua relevância e credibilidade para o mundo através dos seus fundamentos evangélicos de acolhimento incondicional, igualdade, verdade, não-julgamento e justiça.
O nosso mundo precisa de esperança e amor. Preciso de acreditar em algo maior que o humano.
Estou a travar esta luta para recuperar a minha dignidade, que me foi arrancada, mas também e sobretudo porque sou membro e representante desta Igreja e continuo a acreditar na sua relevância.
Travo esta luta porque quero ter orgulho na minha instituição. Sonho vê-la ir em defesa dos mais fracos, dos empobrecidos, dos feridos.
Espero que a Igreja saiba reconhecer as suas próprias limitações em vez de as esconder.
Gostaria de vê-la enfrentar os abusos em vez de os negar, de ouvi-la acolher qualquer um que se diga vítima com mecanismos neutros, imparciais, independentes, rigorosos e profissionais.
Seja uma criança ou um adulto, um membro dos povos indígenas ou das Primeiras Nações, um homem ou uma mulher ou alguém com outra identidade de género, alguém que é afetado por um problema de saúde mental ou física, todos nós temos direito a um rigoroso e justo processo de tratamento de queixas.
É nosso dever como cidadãos, como crentes e também como não crentes, exigir mais justiça e transparência.
Convido-os a pedir mudanças imediatas, a exigir que o Vaticano e as dioceses modifiquem o seu próprio protocolo e colaborem aberta e transparentemente com as vítimas e seus representantes.
Já não sou F.
Sou Paméla Groleau.