No dia 20 de junho de 2023, foi publicado pelo Vaticano o Instrumentum Laboris (Instrumento de trabalho) para o sínodo sobre a Sinodalidade. O cardeal Mario Grech, secretário-geral do Sínodo, descreve-o como sendo “fruto de uma experiência eclesial, de um caminho em que todos aprendemos, caminhando juntos e questionando-nos sobre o significado dessa experiência”. Este documento orientará, em outubro de 2023, o primeiro de dois encontros sinodais. O que nos é dito no Instrumentum Laboris e em todo o processo sinodal decorrido até agora, sobre as mulheres na Igreja e a possibilidade de ordenação de mulheres ao diaconato?
Ministério diaconal e sinodalidade

Phyllis Zagano na Universidade Católica, em Lisboa, durante o debate de apresentação do livro “Mulheres Diáconos”, em Abril de 2019. Foto cedida pelo CITER/UCP.
Durante a alta Idade Média, o diaconato tornou-se cada vez mais cerimonial e, no século XII, era principalmente um passo no caminho para o presbiterado. Ao mesmo tempo, as obras caritativas da Igreja iam desaparecendo, mesmo quando eram mais precisas.
Com diferentes graus de formalidade, mulheres e homens respondiam a essas necessidades, como monges, monjas, eremitas, beguinas, terciários ou anacoretas. Durante os séculos seguintes surgiram mais algumas respostas, mas os apelos para a restauração do diaconado como vocação permanente não conseguiram apoio no Concílio de Trento. Entretanto, começou a desenvolver-se a vida religiosa apostólica (em oposição à monástica ou de clausura). Religiosos e religiosas assumiam as tarefas necessárias para proporcionar os ministérios diaconais da liturgia, da palavra e da caridade, especialmente às pessoas que se encontravam nas margens.
Hoje, muito poucos dos 1,3 bilhão de católicos do mundo sabem o que significa “sinodalidade”. No entanto, a criação de ordens e institutos de vida religiosa apostólica pode dar-nos a explicação mais clara do que é a «sinodalidade». Como resposta às necessidades da Igreja, o fundador reunia-se com um pequeno grupo de homens ou mulheres a fim de auscultarem quais as necessidades locais dos católicos da região, tais como a educação, a catequese, as necessidades sociais, ou todas estas. Juntos rezavam, discutiam e discerniam a melhor maneira de concretizar a mensagem evangélica no seu próprio tempo e lugar.
É precisamente este o processo que, no dia 17 de outubro de 2021, o Papa Francisco convidou toda a Igreja a iniciar. Em agosto de 2022, 112 (de 114) conferências episcopais nacionais enviaram para Roma os resultados das discussões sinodais realizadas. No final de setembro, um grupo de redação multilingue composto por vinte e seis membros examinou-os, juntamente com relatórios das cúrias, da USG e da UISG (organizações de superiores maiores de ordens e institutos religiosos masculinos e femininos), das associações de leigos reunidas pelo Dicastério para os Leigos e do “Sínodo Digital”, para criar o Documento para a Etapa Continental. Publicado em inglês, francês, italiano, português e espanhol no final de outubro de 2022, o Documento para a Etapa Continental pedia as respostas das sete assembleias continentais. O Instrumentum Laboris sintetiza estas respostas.
O que apresenta este enorme projeto? Desde o início, tornou-se evidente que o povo de Deus encontra no clericalismo um grande obstáculo à comunhão, à missão e à participação na vida e nas obras da Igreja. Os relatórios diocesanos, regionais, nacionais e continentais mencionam o clericalismo, de uma forma ou de outra, citando frequentemente o flagelo dos abusos sexuais por parte do clero e as respostas eclesiais inadequadas a todos os níveis como motivo de desânimo geral e descrença no processo sinodal e na própria Igreja.
Outros tópicos incluem a transparência em todos os assuntos da Igreja, a formação do clero e os ministérios laicais. A inclusão de mulheres em todos os níveis de liderança da Igreja, particularmente naqueles que requerem ordenação, foi e é um ponto de discussão. Em resposta, o Documento para a Etapa Continental faz referência a mulheres no diaconato, mas não à ordenação de mulheres como presbíteros.
Etapa continental: “Alarga o espaço da tua tenda”

Intitulado “Alarga o espaço da tua tenda”, o Documento para a Etapa Continental foi o foco de sete assembleias sinodais continentais realizadas entre janeiro e março de 2023. Cada uma delas, convocada pelas respetivas conferências episcopais: América do Norte (USCCB & CCCB), América Latina e Caribe (CELAM), Oceânia (FCBCO), Europa (CCEE), Ásia (FABC), África e Madagascar (SECAM) e Médio Oriente (Assembleia Sinodal para o Médio Oriente) produziu uma resposta. O Documento para a Etapa Continental colocava questões não muito diferentes daquelas consideradas pelos fundadores de institutos e ordens religiosas nos séculos passados. Por exemplo: «Como é que este ‘caminhar juntos’, que hoje se realiza a diferentes níveis (do nível local ao universal), permite à Igreja anunciar o Evangelho segundo a missão que lhe foi confiada; e que passos o Espírito nos convida a dar para crescer como Igreja sinodal?” (Documento preparatório, n.º 2). Ou seja, quais são as necessidades da Igreja hoje e como podemos juntos dar-lhes resposta?
As respostas dos continentes apresentaram abertamente questões sobre as mulheres na Igreja, muitas vezes nomeando a misoginia e o sexismo como problemas subjacentes. Com estes males em pano de fundo, eram urgentes os apelos por mulheres nas lideranças e nos ministérios. O primeiro – a misoginia e o sexismo – apresentava a necessidade do segundo – mulheres na liderança e no ministério – e explicava a resistência contínua e óbvia. Os problemas fizeram surgir as suas próprias soluções.
A ordenação de mulheres como presbíteras não é uma dessas soluções. O secretário-geral do Sínodo, cardeal Mario Grech, disse que as questões “quentes” estariam em “segundo plano” e que outras necessidades prementes da Igreja seriam discutidas na reunião de outubro. Ordenar mulheres como presbíteras, embora tenha sido solicitado em muitos países e mencionado ou implícito nas respostas dos continentes, é claramente uma questão “posta em segundo plano”, e é considerada por muitos como doutrinariamente encerrada. Mas, dado que nunca houve um abandono formal da prática de ordenar mulheres diáconos, essa questão será abordada e talvez encontre resposta.
Dito isto, a questão das mulheres diáconos aparece apenas no Documento para a Etapa Continental, que parecia tomar partido no debate em curso ao mencionar – de forma um tanto ambígua – “a possibilidade de… um diaconato feminino”. Os opositores à perspetiva de ordenar mulheres diáconos afirmam que as mulheres diáconos durante os primeiros anos da Igreja não foram sacramentalmente ordenadas, mas apenas abençoadas para uma desconectada “quarta ordem” ou “um diaconato feminino”. Os defensores da restauração das mulheres ao diaconato fazem notar que as cerimónias litúrgicas eram idênticas ou quase idênticas na ordenação de homens e mulheres como diáconos.
Respostas claras

As respostas das assembleias dos continentes foram claras: a questão não era sobre mulheres não ordenadas chamadas diaconisas. Se fossem ordenadas, as mulheres diáconos, pertenceriam ao clero e, como tal, teriam acesso a papéis de maior relevo na liderança e no ministério, incluindo e, talvez de modo especial, a pregação.
É importante notar que, embora o processo sinodal seja cada vez mais controlado por clérigos – os delegados às várias reuniões continentais foram escolhidos pelos bispos diocesanos – cada continente apresentou a questão inevitável do lugar da mulher na Igreja.
O relatório norte-americano, resultado de doze sessões zoom para delegados dos Estados Unidos e do Canadá, 56% dos quais eram funcionários diocesanos, pedia que as mulheres “assumissem realmente funções de liderança” e propunha uma análise da “ordenação”.
Em cada uma das quatro reuniões regionais presenciais realizadas pelo CELAM para a América do Sul, que incluíram delegados do México, muitos deles apresentaram a necessidade urgente da instituição de um diaconato de mulheres, reconhecendo que esses ministérios já existem em várias comunidades. Criticaram também duramente o facto de as mulheres serem usadas como “mão de obra barata” pela Igreja.
Na sequência da reunião presencial nas ilhas Fiji, o relatório da Oceânia denunciou a situação das mulheres que recebem salários precários e sofrem violência física e emocional. O relatório da Oceânia incluiu, embora tentando minimizá-los, os pedidos de ordenação de mulheres, vindos especialmente da Austrália e da Nova Zelândia.
Reunidos em Praga, os delegados europeus repetiram os apelos ao “reconhecimento da dignidade e da vocação de todos os batizados”, nomeando a ordenação de mulheres para o diaconado como uma “preocupação”. Talvez porque o seu grupo de trabalho fosse em língua inglesa, considerando o diaconato e o sacerdócio como um único assunto, as opiniões resultaram “divididas”.
A reunião da assembleia da Ásia, em Banguecoque, fez eco das preocupações mundiais sobre o lugar e o estatuto das mulheres, que consideraram não estarem suficientemente incluídas, ou mesmo ser afastadas, nas tomadas de decisões. Pediram de forma direta “um repensar a participação das mulheres na vida da Igreja, dado que as mulheres desempenharam um papel importante na Bíblia”.
Os delegados africanos, reunidos na Etiópia, apresentaram o seu apelo sinodal por “mais oportunidades e estruturas para as mulheres” e a promoção da “inclusão” e da “participação”. Embora apelasse ao reforço da subsidiariedade a todos os níveis da vida da Igreja, não fazia qualquer referência direta às mulheres diáconos.
Em Beirute, a assembleia do Médio Oriente apontou para a necessidade de “coragem profética” em relação à participação das mulheres: “As nossas respetivas Igrejas devem começar a refletir seriamente sobre o restabelecimento do diaconato para as mulheres”. A assembleia incluiu a Igreja Maronita, que determinou no Sínodo do Monte Líbano de 1736 que os bispos poderiam ordenar mulheres diáconos. Em 1746, os seus cânones foram aprovados in forma specifica pelo Papa Bento XIV.
Em resumo, as sete respostas continentais ao Documento para a Etapa Continental foram claras ao afirmar que as mulheres são maltratadas, ou mesmo ignoradas, pela “Igreja”. Todos fizeram notar que o clericalismo, em todas as suas formas, contribuiu ou de facto foi a causa direta de tantas dificuldades. No topo da lista dos antídotos está a melhoria da formação nos seminários. E, tanto direta como indiretamente, as respostas apontaram para a restauração das mulheres ao diaconato.
“Instrumentum Laboris” e reuniões sinodais

Estas respostas ao Documento para a Etapa Continental, enviadas aos gabinetes sinodais em março e abril de 2023, resultaram no Instrumentum Laboris ou Documento de Trabalho publicado no dia 20 de junho 2023. Produzido por uma equipa de vinte e duas pessoas, o Instrumentum Laboris é o texto base para a primeira das duas assembleias sinodais a realizar em Roma, de 4 a 29 de outubro de 2023.
As próprias reuniões sinodais são inovadoras na medida em que, pela primeira vez, incluirão muitos leigos como membros votantes. A maioria dos membros serão bispos, representantes das dioceses e das cúrias. Além disso, as sete assembleias continentais foram convidadas a nomear vinte não-bispos (padres, diáconos, religiosos não ordenados, leigos) com a condição de metade dos nomeados serem mulheres e de pessoas mais jovens serem também incluídas. Setenta dos 140 nomeados foram escolhidos como membros votantes do sínodo. Haverá também dez religiosos com votos: a União Internacional dos Superiores Gerais (UISG) feminina e a União dos Superiores Gerais (USG) masculina enviarão cinco representantes cada. Anteriormente, o grupo de homens nomeou dez representantes votantes e, mais recentemente, dois irmãos religiosos votaram no Sínodo da Amazónia. Os membros do Sínodo reunirão na Sala Paulo VI, em Roma, durante as reuniões de outubro de 2023 e outubro de 2024
O que mais chama a atenção no Instrumentum Laboris é que se assemelha mais a um roteiro para o processo do que a um documento com declarações a serem consideradas. Não muito diferente dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, o Documento de Trabalho traça um caminho e ensina um método de discernimento da vontade de Deus. As várias questões são o resultado da oração, discussão e discernimento que aconteceram previamente em todo o mundo. O Instrumentum laboris pede aos membros do Sínodo que considerem todos os documentos anteriores, especialmente o Documento para a Etapa Continental, os Documentos finais das Assembleias Continentais e o relatório do “Sínodo Digital”, como meios para “continuar o caminho já em curso”. O Instrumentum Laboris não dá respostas. Faz perguntas.
Uma questão que está no centro da atenção das mulheres em todo o mundo é a retomada da prática de ordenar mulheres diáconos, sobre a qual não há nenhum ensinamento do magistério. O Instrumentum Laboris refere: “A maioria das assembleias continentais e as sínteses de várias conferências episcopais pedem que se considere a questão da inclusão das mulheres no diaconato.” Em seguida, pergunta: “É possível considerar esta questão e como fazê-lo?”
A possível ambiguidade intencional no Documento para a Etapa Continental está refletida no Instrumentum Laboris. O Documento para a Etapa Continental falava de “um diaconato feminino”, que pode significar mulheres ordenadas como diáconos. Ou pode significar mulheres num ministério leigo não ordenado. Devemos perguntar-nos se a frase “inclusão da mulher no diaconato” no Instrumentum Laboris é igualmente ambígua.
Conclusões
E uma das questões relativa à sua participação é o diaconato feminino. O terem sido ordenadas mulheres diáconos é um facto histórico, mas esse facto diz respeito a um momento e a um lugar particular da história cristã. A história por si só, não é determinante. Se a Igreja de hoje concluir que mulheres diáconos são necessárias, isto pode ser parcialmente resolvido pelo Sínodo, sendo depois formalmente aprovado pelo Papa. Caberia às conferências episcopais solicitar mulheres diáconos, e cada bispo diocesano tomaria as suas próprias determinações sobre a concretização local.
Haverá argumentos significativos contra a ordenação de mulheres diáconos, mas dizer que as mulheres não podem ser ordenadas, apenas com acesso a um ministério quase-diaconal, insulta a sua igualdade batismal. O falso argumento contra a restauração das mulheres ao diaconado ordenado que afirma que as mulheres não podem ser imagem de Cristo é a causa implícita, se não direta, da difamação e do desrespeito pelas mulheres em todos os continentes. Como assinala o Instrumentum laboris, «uma Igreja sinodal deve abordar estas questões em conjunto, procurando respostas que ofereçam um maior reconhecimento da dignidade batismal da mulher e a rejeição de todas as formas de discriminação e exclusão enfrentadas pelas mulheres na Igreja e na sociedade».
Phyllis Zagano é autora de várias obras sobre mulheres no diaconato e, mais recentemente, co-autora de Mulheres Diáconos: Passado, Presente e Futuro [Paulinas Editora]. É também investigadora na Universidade de Hofstra. Este texto é publicado pelo 7MARGENS com a autorização da autora e da Commonweal, onde foi inicialmente publicado.