
“O assassinato de Mahsa Amini resume assim, na sua brutalidade, aquela que tem sido a atitude de continuada segregação e humilhação da mulher pela República Islâmica do Irão.” Foto: Protestos no Irão contra morte de Masha Amini. Redes Sociais
“Mulher, Vida, Liberdade” é mais do que um slogan, é o grito e a bandeira de um poderoso movimento de protesto contra o regime iraniano, que se levantou logo após o bárbaro assassinato de uma jovem iraniana de 22 anos, às mãos da chamada «polícia da moralidade», por alegado incumprimento da lei relativa ao uso obrigatório do véu.
O assassinato de Mahsa Amini resume assim, na sua brutalidade, aquela que tem sido a atitude de continuada segregação e humilhação da mulher pela República Islâmica do Irão. Por contraste, o ato de condenação da cultura patriarcal que se impõe sobre as mulheres tem sido o gesto pacífico de cortar os cabelos. Um ato poderoso, contudo, pleno de simbolismo uma vez que se tornou num gesto mais amplo de protesto de toda uma sociedade contra o poder da mordaça político-confessional.
O regime reage. E fá-lo com brutalidade. Serão os estertores da sua morte? Esperemos que sim. Mas enquanto o não sabemos, vemos a reação, sanguinária, implacável. As punições sucedem-se e em muitos casos resultam na morte dos que ousam protestar. Os dados mais recentes anunciam a morte de 525 manifestantes (desde 17 de setembro a 23 de janeiro), dos quais 71 eram crianças. O número de manifestantes presos durante o mesmo período é de quase 20 mil!
Nos dois primeiros meses de 2023, pelo menos 102 prisioneiros foram executados em prisões iranianas. Um terço era de origem curda. Na onda da barbárie, claramente o regime aproveita para ir ceifando outro tipo de opositores, como os curdos. De que são todos eles acusados? De lutar contra Deus. Mas não, não é contra Deus que lutam, é contra os homens que cometem, diria eu, a blasfémia de matar, de torturar, de oprimir, em nome de Deus.
Este é o cenário atual. Mas muitas mais centenas de manifestantes já haviam sido detidos antes dos protestos de 2022, entre eles os ativistas ambientais Niloufar Bayani e Sepideh Kashani e o ativista Narges Mohammadi. Desde novembro até hoje, têm também sido relatados casos de envenenamento de crianças (cerca de 700, principalmente meninas), em idade escolar, sobretudo em grandes cidades como Teerão, Qom, Sari, Ardabil, Borujerd, Torbat-e-Jam e Qoochan. Os envenenamentos por inalação, ocorridos em espaço escolar para meninas e jovens mulheres estarão a ser perpetrados por grupos religiosos extremistas que se opõem à educação e formação feminina. Ou não fosse a educação a arma da liberdade, o antídoto das trevas. Não há qualquer prova de que o regime seja o autor, mas acaba por sê-lo de um ponto de vista da responsabilidade moral, na medida em que é o regime que legitima politicamente as interpretações fundamentalistas feitas em torno do papel da mulher e sobretudo em torno da sua presença na vida pública.
Apesar da brutalidade do regime por um lado, e das tentativas quase patéticas por outro de criar a falsa sensação de apaziguamento social (através por exemplo do anúncio em dezembro passado da decisão de extinguir a polícia da moralidade); apesar também de algum (compreensível) desgaste da sociedade perante os parcos resultados da sua luta, acredito que o movimento “Mulher, Vida, Liberdade” não vai esmorecer! Que o digam as mulheres prisioneiras de Evin!
Nos arredores de Teerão, a prisão de Evin, criada em 1972, permanece até hoje como a prisão onde o regime iraniano encarcera a maioria dos seus opositores políticos. Professores, estudantes, artistas, escritores, cineastas, compositores, enfim, gente que afronta o regime porque se atreve a pensar pela sua própria cabeça, e que questiona assim a lógica de uma ditadura da purga moral que insiste em abafar e tolher gerações e gerações de iranianos e de iranianas.
É também na prisão de Evin que estão por isso muitas das mulheres que têm ousado levantar a sua voz contra um regime patriarcal e misógino que cobardemente se escuda em leituras arcaicas e deliberadamente deturpadoras da própria mensagem corânica, para as agrilhoar e humilhar. Mas os muros de Evin não conseguem aprisionar nem calar a voz da sua resistência, o espírito inquebrantável da sua luta. Porque, afinal, o que essas mulheres desejam é tão só o respeito, a dignidade, a liberdade, o direito básico a estarem no espaço público sem temerem pela sua própria vida. Quando por isso, em janeiro passado, através de uma chamada telefónica, se ouviu a voz das mulheres em coro enérgico, cantando uma versão persa da canção italiana de resistência, Bella Ciao, ouviu-se muito mais: ouviu-se a voz de toda uma sociedade que clama por justiça, por respeito e por liberdade. E que não se calará.
Isabel Estrada Carvalhais é deputada pelo Partido Socialista ao Parlamento Europeu, professora associada da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho e doutorada em Sociologia. Este texto foi inicialmente publicado no Correio do Minho.