Vale tudo para que haja espectáculo? Formulada mais ou menos assim ou de outro modo, a questão tem sido abundantemente colocada a propósito do Mundial de Futebol que hoje começa no Qatar. O “valer tudo” diz respeito, desde logo, à quantidade de trabalhadores que morreram nas obras feitas para acolher a iniciativa, “sacrificados no altar do deus futebol”, como disse o diário francês Le Monde [1]; mas também tem a ver com o “desastre ecológico” que este campeonato representa, designadamente por causa da sua “aberração energética”, para usar expressões de organizações de defesa do ambiente, também citadas pelo Monde; e com as fundadas suspeitas de corrupção na votação que decidiu em que país se jogaria o Mundial.
La Vie, um semanário francês cristão sobre temas da actualidade, colocou na capa do seu número mais recente, dedicado ao evento, uma pergunta fundamental: “Ainda há algo de bom no futebol?”, mas a interrogação agora mais urgente é sobre se o Campeonato do Mundo deve ou não ser boicotado. Dito de outro modo: “No momento de apelos ao boicote, o futebol deve ser separado do negócio em que se tornou?” [2]. Uma resposta, de certo modo inesperada, por vir de fora dos fóruns habituais, é dada na edição francesa da revista Família Cristã por um bispo católico e um pastor evangélico. A publicação não cria qualquer suspense em relação à opinião do bispo Emmanuel Gobilliard, praticante de paraquedismo, e do pastor Joël Thibault, que gosta de jogar futebol; ela é coincidente e encontra-se logo no título: “Porque boicotaremos o Campeonato do Mundo do Qatar” [3].
“Como simples espectador, sinto-me responsável por não o caucionar assistindo aos jogos”, garante Emmanuel Gobilliard, nomeado há pouco mais de um mês, bispo de Digne, Riez e Sisteron, acrescentando que não quer impor a sua “escolha moral” aos outros (o recado, em todo o caso, ficou dado: o que decidimos ver ou não ver nos ecrãs são escolhas também de ordem moral).
O pastor Joël Thibault considera que, ao assistir aos jogos de futebol, “teremos diante dos olhos os 6.500 caixões dos trabalhadores que perderam a vida nas obras do Qatar”. Mesmo que o número, que corresponde ao que foi estimado pelo diário britânico The Guardian, possa estar incorrecto, é incontestável que houve uma desgraçada exploração de trabalhadores migrantes da construção civil. A existência de um trabalho executado em condições indignas e com horários infra-humanos deu cabo de muitas vidas. Durante o período mais árduo das obras, os trabalhadores migrantes estavam sujeitos a um tutor, que, de facto, era um dono de escravos.
É certo que, sob pressão internacional, o Qatar alteraria o código de trabalho. O problema, constata o Monde, “é que as autoridades qataris apenas consentiram esta reforma de fundo em 2020, depois de dez anos de negações e adiamentos, quando a maior parte das obras de infraestruturas do Mundial já estavam terminadas” [4].
“Um cristão pode assistir com tranquilidade de espírito a este Campeonato do Mundo?”, perguntou o jornalista Benjamin Coste ao bispo e ao pastor. O bispo não vai assistir aos jogos, mas explicou que já lá vai o tempo em que a Igreja Católica dizia às pessoas, através dos párocos, como vestir, educar os filhos ou votar. O pastor também não olhará para os ecrãs e terá de despertar a consciência do filho de 13 anos que não compreenderia a razão por que o pai, este ano, não vai querer ver futebol. Mas, claro, não impedirá o rapaz de assistir aos jogos.
O bispo Emmanuel Gobilliard, de resto, recomenda a qualquer velho, amante de futebol, que esteja em algum lar, que veja o Mundial sem pensar duas vezes. “Regozijo-me que a competição lhe traga um pouco de distracção”. “Podemos aconselhá-lo a desligar a televisão durante o intervalo”, acrescenta, ironicamente, o pastor Joël Thibault.
Em França, a controvérsia é ainda mais intensa por se acreditar que a decisão de escolher o Qatar para a realização do Mundial foi manipulada pelo então Presidente da República, Nicolas Sarkozy, que, para o efeito, instrumentalizou um seu apoiante político, Michel Platini, então presidente da União Europeia das Associações de Futebol (UEFA). Essa possibilidade está a ser investigada desde 2019 pela justiça francesa que quer apurar se Nicolas Sarkozy, entre outros crimes, corrompeu e foi corrompido. A vergonha da entrega do Mundial ao Qatar fez com que várias municipalidades francesas decidissem não instalar, como noutras ocasiões, ecrãs gigantes para difusão dos jogos de futebol. Muitas cidades europeias também não terão fan zones, nome por que são mais conhecidas as beer zones.
Razões não faltam para reprovar a realização do Mundial no Qatar. Na altura em que tanto se tem discutido sobre o que fazer para salvar o planeta da catástrofe climática, o Qatar vai ajudar a destruí-lo. A lista de “aberrações ecológicas”, que inclui a existência de ar condicionado nos estádios, é extensa, mas há uma, denunciada pela Greenpeace e citada pelo Monde, que é especialmente curiosa: para transportar para Doha, a capital do Qatar, os adeptos alojados em cidades dos países vizinhos, particularmente do Dubai, estão programados 160 voos diários. Ou seja, um avião a cada 10 minutos [5].
Notas
[1] [4] [5] Stéphane Mandard, Rémi Dupré e Benjamin Barthe – “Coupe du monde 2022 au Qatar : les raisons du malaise”. Le Monde, 8 de Outubro de 2022.
[2] Caroline Vinet – “Coupe du monde 2022 : boycotter ou pas ? Le foot à l’épreuve de ses valeurs”. La Vie, 16 de Novembro de 2022.
[3] Benjamin Coste – “Mgr Gobilliard et le pasteur Joël Thibault : « Pourquoi nous boycotterons la Coupe du monde au Qatar »”. Famille Chrétienne, 16 de Novembro de 2022.