
O concerto inicia-se com The Beatitudes, obra composta pelo estoniano Arvo Pärt em 1990-91. Foto retirada da página do compositor no Facebook.
Hinário para um tempo de confiança, obra musical de Alfredo Teixeira, sobre textos de frei José Augusto Mourão, e The Beatitudes (As bem-aventuranças), do estoniano Arvo Pärt, raramente interpretada em Portugal, são as duas peças que marcam o regresso do Ensemble São Tomás de Aquino à sua temporada de concertos, neste sábado, 5 de Junho, às 21h, na Igreja Paroquial de São Tomás de Aquino (R. Virgílio Correia, em Lisboa).
O concerto, com a duração aproximada de 60 minutos, tem entrada livre, pela ordem de chegada até ao limite da lotação definida (um terço da lotação da igreja), com uso obrigatório de máscara.
A obra Hinário para um tempo de confiança, de Alfredo Teixeira, resulta de um trabalho continuado do compositor sobre a poesia litúrgica do frade dominicano José Augusto Mourão (1947-2011, assinalando o décimo aniversário da sua morte, ocorrido no passado dia 5 de Maio. Obra composta já este ano, para coro, saxofone e órgão, ela celebra “a singularidade da sua palavra poética na contemporaneidade portuguesa”.
O concerto inicia-se com The Beatitudes, para coro misto (ou solistas) e órgão. Obra composta em 1990-91, uma das primeiras em que o compositor trabalha sobre a língua inglesa, baseia-se numa secção do Discurso da Montanha, no Evangelho de Mateus (5: 3-12). “Trata-se de uma meditação musical sobre um dos textos matriciais do património espiritual da nossa cultura”, lê-se na apresentação do concerto.
Esta peça de Pärt, nascido em 1935, resulta de uma encomenda da estação de rádio alemã RIAS, e foi estreada em 25 de Maio de 1990, na Igreja de Nathaniel (Nathanielkirche), em Berlim, com a participação do ensemble Theatre of Voices e o organista Christopher Bowers-Broadbent, sob a direção de Paul Hillier. Alfredo Teixeira nota que o facto de ser uma das primeiras obras de Pärt em que o compositor trabalha sobre a língua inglesa “é importante, na medida em que os processos de composição” do estoniano “têm uma forte correlação com as estruturas da língua”.
“O canto é rigorosamente silábico”, explica Teixeira, no texto de apresentação do concerto, a que o 7MARGENS teve acesso. “Cada elemento frásico, dividido por um sinal de pontuação, é enunciado num campo harmónico diferente do anterior, separado por uma grande pausa. Este processo acentua o carácter meditativo desta leitura de um dos textos matriciais do património espiritual da nossa cultura.”
A obra recria o estilo Tintinnabulum (pequeno sino), com que Pärt regressou à composição depois de um período de silêncio entre 1968 e 1976. “Trata-se de um particular cruzamento entre as técnicas de cantilação de origem judaica e cristã e as formas mais arcaicas de contraponto”, acrescenta Alfredo Teixeira. “Arvo Pärt interpreta, assim, a mensagem central do texto cristão, enquanto tensão entre promessa e realização, entre origem e destino – mas uma tensão reconciliada. The Beatitudes apresenta-se, por um lado, como uma obra firmemente ancorada na narrativa de uma tradição (o evangelho cristão), e por outro, aberta à universalidade da experiência humana.” Numa entrevista publicada em 2010, Arvo Pärt referia-se à presença dos textos bíblicos e litúrgicos na sua obra afirmando que, “na medida em que estão ligados a verdades universais”, eles “estão próximos da verdade íntima, da pureza, da beleza, do núcleo ideal ao qual se liga cada ser humano”.
Um raio que atravessa o vitral

Já o Hinário para um tempo de confiança parte do trabalho teopoético de José Augusto Mourão como “protagonista de um inovador trabalho de criação de uma nova textualidade para a liturgia”: “Trata-se de uma palavra enraizada nos ritos cristãos, mas crítica de uma liturgia que fosse a ‘mesmice de um tempo homogéneo’, ou o ‘espaço achatado avesso ao imprevisto’”, escreve Teixeira a propósito deste trabalho.
Para o frade dominicano, diz ainda o compositor, “a transfiguração é o fulcro da operação ritual genuinamente cristã, como o assinala num poema seminal: ‘venha o teu anjo / como raio que atravessa o vitral / e não o quebra / e o transfigura’.” E acrescenta: “É essa via de transfiguração que habita o programa musical que reúne estes seis hinos. Procura-se o espírito da liturgia, mas num outro contexto, próximo da figura do ‘concerto espiritual’, que se divulgou nas práticas musicais das reformas protestante e católica, a partir do século XVI.”
Alfredo Teixeira cita o artista plástico Paul Thek (1933-1988) que criou o projecto Art is Liturgy (a arte é liturgia). “Nessa experimentação, a arte, na sua capacidade de transfiguração, é pensada nas suas afinidades com a espiritualidade litúrgica.” O Hinário ensaia uma leitura inversa: “Liturgy is Art, uma vez que a poesia de José Augusto Mourão, nascida na liturgia cristã, se oferece, como acontecimento artístico e lugar de hospitalidade, a todos os que buscam uma significação espiritual do mundo – ‘o fazer do mundo a vir’.”
Neste caso, “o idioma musical está fortemente marcado pela dicção poética” e assim “cada hino é um programa”. “O trabalho composicional depende estruturalmente do material literário, procurando os microclimas que favoreçam o encontro com a palavra, instalando-a numa temporalidade própria. As vias podem ser múltiplas: a evocação do canto na arquitectura do espaço; o diálogo entre a voz singular e a voz comunitária; a experiência da dilatação de uma frase, ou a paragem contemplativa sobre uma palavra. Nesse itinerário, o órgão e o saxofone assumem esse lugar de ‘estrangeiros’, numa música visceralmente vocal, ‘vigiando o invisível’.”