
Uma das jovens do Grupo Renascer mostra o folheto que prepararam para trazer à Jornada: “Onde está a misericórdia?”, perguntam. Foto © Clara Raimundo/7MARGENS.
Com sorte, “ainda entregamos um folheto destes ao Papa”, dizem os jovens da paróquia de Modelos (Paços de Ferreira). Contestando o estado das prisões em Portugal, foram ao Parque do Perdão, onde estão os confessionários feitos por 150 presos, para sensibilizar para os valores da misericórdia e do perdão. Mas houve responsáveis da Igreja que os quiseram impedir. “Lamentável”, diz o presidente da Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos.
A noite de sono não foi particularmente longa ou retemperadora para os 15 jovens do Grupo Renascer, da paróquia de Modelos (Paços de Ferreira), que vieram à Jornada Mundial da Juventude (JMJ). Tal como muitos milhares de peregrinos, dormiram “no chão duro” de uma escola – neste caso, em Pinhal de Frades (Seixal) – mas na manhã desta terça-feira, 1 de agosto, acordaram especialmente entusiasmados. É que tinha finalmente chegado “o grande dia”: não apenas o primeiro dia da Jornada, mas aquele em que iriam iniciar a missão para a qual se prepararam durante meses.
Vestiram as t-shirts cor de rosa com a frase bíblica mais votada durante um dos seus últimos encontros estampada nas costas – “Lembra-te dos presos como se estivesses com eles na prisão” – uns na versão em português, outros em inglês, para que todos percebessem ao que iam. E, inspirados pelo lema da JMJ, partiram apressadamente rumo ao Parque do Perdão, em Lisboa. Nos jardins de Belém, onde estavam dispostos os 150 confessionários construídos por reclusos de três estabelecimentos prisionais portugueses, foram ao encontro das centenas de peregrinos que formavam já uma longa fila, e começaram a sua ação de sensibilização sobre as prisões em Portugal.
“Já deves saber que os confessionários da JMJ foram construídos por presos, mas sabias que, no nosso país, os presos que trabalham, que são uma minoria, recebem menos de 1 euro por hora?”, podia ler-se no folheto que iam distribuindo. E que “o tempo médio de cumprimento de pena é três vezes mais do que a média da União Europeia?”, continuava o texto. “Há reclusos que cumprem mais do que 25 anos de pena”, alertava ainda. E deixava uma última pergunta: “Onde está a misericórdia?”.
Catarina Cruz, 25 anos, faz parte deste grupo de jovens que resolveu dedicar a manhã do primeiro dia da JMJ a fazer essa pergunta ao maior número de peregrinos possível. Muitos escutavam-na com um sorriso, e levavam consigo o folheto, mas houve quem o recusasse assim que percebia do que se tratava, e até quem fizesse comentários como “na prisão é que eles estão bem” ou “os presos deviam era ir limpar as matas”.
“E é por sabermos que muitos jovens crescem com esta perspetiva, influenciados pela sociedade e pelo que ouvem nos média, que nós estamos aqui”, afirma Catarina. A jovem professora de Inglês e Alemão reconhece que, mesmo no seio do grupo que esta manhã distribuiu, com visível entusiasmo, os folhetos, muitos jovens só ficaram a conhecer a realidade das prisões através de uma ação de sensibilização levada a cabo na paróquia pelo presidente da Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos (OVAR), Manuel Almeida dos Santos, no final do ano passado.
“O Papa é um rebelde, e nós somos rebeldes como ele”

Fátima Leal, animadora do grupo Renascer e também ela peregrina nesta JMJ, pertence àquela instituição católica, visitando semanalmente reclusos nas prisões de Paços de Ferreira e de Vale do Sousa. Por isso, foi com “uma enorme alegria e orgulho” que assistiu à mobilização de todo o grupo para esta missão. O caminho de preparação culminou na visita a ambas as prisões, poucos dias antes de começar a JMJ, pelos elementos do grupo com mais de 18 anos.
“Com essas visitas, ao ver os rostos daqueles reclusos, que nos receberam com um sorriso, fiquei com ainda mais força para seguirmos em frente com a nossa missão. Senti que poderíamos ser nós a estar ali, atrás daqueles portões, ou alguém da nossa família, e que estas pessoas não podem ser deixadas de parte”, sublinha a professora, num curto intervalo para falar ao 7MARGENS, antes de ir distribuir mais alguns folhetos.
Mas “infelizmente, alguns setores da Igreja não apoiam esta missão, e ontem, quando já vínhamos a caminho de Lisboa, tentaram demover-nos”, lamenta Fátima Leal. A professora de Engenharia Informática, 36 anos, confessa que ficou “desiludida” com esta atitude, vinda de responsáveis da instituição “que mais deveria apoiar estes jovens e que tem o perdão e a misericórdia no centro da sua mensagem”.
Manuel Almeida dos Santos vai mais longe: “É lamentável que alguém da estrutura dirigente da Igreja Católica em Portugal queira impedir que os jovens divulguem os seus sentimentos, face à desumanidade e à necessidade de implementar uma vivência cristã nas prisões”.
O presidente da OVAR considera que “o folheto que estão a distribuir, completamente concebido pelos jovens, é um grito de alerta”, e deixa um apelo: “Os jovens são os construtores da Jornada. Deixem-nos em paz a fazerem o que o Papa Francisco exorta: um mundo de paz, de coragem e de denúncia dos atropelos aos valores cristãos.”

Cristina assume que também não esperava tal atitude, e acrescenta que, quando o grupo estava a distribuir os folhetos junto ao Parque do Perdão houve até uma voluntária que lhes disse que não poderiam fazê-lo ali, por não terem uma “autorização por escrito da organização”. Mas garante que o grupo não esmoreceu, e que até já têm preparada a intervenção que pretendem fazer durante os encontros Rise Up (Erguer-se) desta sexta-feira, dedicados precisamente ao tema da misericórdia. “Sabemos que muitas vezes não é fácil olhar para quem comete um crime com um coração misericordioso, e menos fácil é ser capaz de perdoar. Mas, enquanto cristãos, devemos sempre procurar cultivar os valores de liberdade, igualdade, fraternidade, paz e tolerância, em vez do ódio, vingança, egoísmo, violência e insensibilidade, que tanto vemos no mundo, hoje em dia”, dirão.
“E também vamos citar o Papa Francisco, que tem dado muita atenção a este tema, que nos inspira na nossa missão e que de certeza estaria do nosso lado”, sublinha Catarina. Depois, pouco antes de regressar à distribuição de folhetos, atira: “No fundo, ele é um rebelde, e nós somos rebeldes como ele… com sorte, ainda lhe entregamos também um folheto destes!”.
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