
Memorial de guerra em Shusha, cidade em Nagorno-Karabakh. Foto © OSTILL.
Não é algo que se costume referir quando se fala da Arménia, mas sem dúvida que é uma informação importante para compreender o que se passa no enclave de Nagorno-Karabakh (internacionalmente reconhecido como parte do Azerbaijão, mas governado de facto por arménios desde o colapso da União Soviética): trata-se da primeira nação do mundo a ter adotado o cristianismo como religião de Estado, no início do século IV. E o enclave, ao qual os habitantes locais chamam Artsakh, é o território ancestral de 120 mil pessoas, dos quais 98% são arménios cristãos, e lar de inúmeras igrejas e mosteiros que estão entre os mais antigos do mundo.
Segundo a tradição judaico-cristã, foi no Monte Ararat – em território arménio – que pousou a mitológica arca de Noé, depois do Dilúvio, e se iniciou o repovoamento da Terra, recordam António Loja Neves e Margarida Neves Pereira na sua obra Arménia, Povo e Identidade. Poderia ter sido um bom presságio para a região, mas como berço civilizacional e ponto de passagem de pessoas e rotas comerciais, a Arménia sujeitou-se desde cedo às investidas de vários impérios guerreiros, dos persas e dos romanos ao Império Otomano e à Turquia. Como sobreviveram, então, os arménios? Mais ou menos subjugados, através de um forte sentido identitário, alicerçado sobretudo na religião e na língua (o alfabeto arménio foi inventado no começo do século V).
Sobreviveram, até, ao genocídio perpetrado pelo governo otomano entre 1914 e 1923, com o extermínio de dois milhões de pessoas, e que terá inspirado Hitler para o Holocausto (recorde-se que Francisco foi o primeiro Papa a usar a palavra “genocídio” para se referir ao assassinato em massa de arménios sob o domínio otomano durante a Grande Guerra 1914-1918 ,e que isso provocou a ira da Turquia, que continua a negar a extensão do massacre).
Quanto à disputa sobre Nagorno-Karabakh, ele é o conflito mais antigo na Eurásia pós-soviética, explica o think tank norte-americano Conselho de Relações Exteriores. Após a dissolução da União Soviética em 1991, a Arménia e o Azerbaijão travaram uma guerra pela região, deixando o enclave dentro do Azerbaijão nominalmente independente, mas com ligações estreitas à Arménia. No final da guerra, as forças arménias vitoriosas tomaram Nagorno-Karabakh e sete distritos próximos do Azerbaijão, causando um êxodo de mais de 600 mil azeris. Em 2020, o Azerbaijão invadiu e recapturou a maior parte do seu antigo território perdido no conflito anterior.
O que aconteceu nos últimos nove meses?

Nagorno-Karabakh ficou ligado à Arménia por uma estrada montanhosa conhecida como corredor de Lachin – a “estrada da vida”, como lhe chamam os residentes do enclave – e que em dezembro do ano passado o Azerbaijão decidiu bloquear, insistindo na sua soberania reconhecida internacionalmente para alegadamente impedir o fluxo de armas destinadas aos separatistas no enclave. Na prática, transformou o território numa prisão a céu aberto. Pior que uma prisão, pois nas prisões há água potável, comida, eletricidade, e acesso a cuidados de saúde. Ali deixou de existir tudo isso. Há quem diga que o transformou num enorme campo de concentração.
Além de armas, o Azerbaijão impediu a passagem de alimentos, bens e medicamentos. As famílias ficaram restritas a um pão por dia. O fornecimento de gás foi cortado, a água deixou de ser tratada. O número de abortos espontâneos registados quadruplicou à medida que o acesso a cuidados médicos diminuiu, e Nagorno-Karabakh comunicou a sua primeira morte por subnutrição no passado dia 15 de agosto, de acordo com o Provedor de Direitos Humanos nomeado pelas autoridades do enclave.
Num relatório publicado no início de agosto, o ex-procurador-chefe do Tribunal Penal Internacional (TPI), Luis Moreno Ocampo, alertou que existia já uma “base razoável” para acreditar que o Azerbaijão estava a cometer um genocídio contra os arménios étnicos em Nagorno-Karabakh através do bloqueio do Corredor de Lachin. Ocampo referiu-se à fome como “arma invisível do genocídio” e alertou que um dos quadros considerados na definição de genocídio da convenção da ONU – “infligir deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar a sua destruição física” – estava ali a ser desenhado.
E nas últimas semanas?
No dia 9 de setembro, a Arménia e o Azerbaijão anunciaram um compromisso para reabrir simultaneamente o Corredor de Lachin e uma estrada que liga Nagorno-Karabakh ao Azerbaijão. A 12 de setembro, responsáveis da região separatista afirmaram que a ajuda humanitária da Cruz Vermelha Russa tinha chegado ao enclave através do Azerbaijão, mas não estava claro se o acesso ao Corredor de Lachin havia sido efetivamente restaurado.
Os dois países teriam chegado a um acordo provisório para pôr fim ao bloqueio do Corredor de Lachin, mas os governos continuavam divididos nos princípios críticos de um acordo duradouro. O primeiro-ministro arménio, Nikol Pashinyan, ofereceu-se para renunciar à reivindicação do seu país sobre Karabakh se os direitos dos arménios étnicos fossem protegidos através de mecanismos internacionais. No entanto, o Presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, recusou-se a concordar com isso, afirmando que as exigências de proteções internacionais são uma violação dos assuntos internos do Azerbaijão e que os arménios étnicos já estão abrangidos pelas proteções da constituição do Azerbaijão para as suas outras minorias étnicas. Aliyev também declarou que qualquer arménio que não queira viver sob a soberania do Azerbaijão deverá partir.
Porque é tão difícil alcançar uma solução duradoura?
“Nagorno-Karabakh tem os ingredientes de um conflito intratável”, afirma o Conselho de Relações Exteriores. “Um pedaço de território contestado onde a soberania é difícil de determinar satisfatoriamente, profundas animosidades baseadas na etnia agravadas pelo trauma e pelas queixas de duas guerras, e rivalidades geopolíticas circundantes que tornam a mediação internacional e o compromisso excessivamente difícil.”
A radiografia religiosa na região também é complexa, uma vez que – como faz notar a revista Christianity Today – “a Arménia é aliada da Rússia Ortodoxa e do Irão [muçulmano] xiita contra os amigos do Ocidente, o Azerbaijão xiita, a Turquia [muçulmana] sunita e o Israel judaico”.
Além disso, há interesses políticos e financeiros da parte de outras nações em perpetuar o conflito. Por exemplo, o apoio militar total da Turquia ao Azerbaijão encorajou a investida de 2020 para retomar território, e o estatuto da Rússia como mediadora do conflito e força de manutenção da paz permitiram-lhe manter influência no Cáucaso.
Assim, não foi propriamente uma surpresa quando, a 19 de setembro, após nove meses de bloqueio ao território, e numa altura em que aparentemente tudo se preparava para que este fosse levantado, o Azerbaijão lançou uma nova ofensiva militar, que matou mais de 200 arménios e feriu, pelo menos, outros 400, e provocou um êxodo em massa dos habitantes da região, que receiam ser alvos de perseguição e de limpeza étnica. E quando esta segunda-feira, 25, quando havia já sido acordado um cessar-fogo, mas milhares permaneciam em filas intermináveis para sair do enclave, um tanque de combustível explodiu perto de Stepanakert, a maior cidade da região. De acordo com o mais recente balanço do Ministério da Saúde da Arménia, a explosão matou pelo menos 125 pessoas e feriu mais de 300. A causa ainda não foi determinada.
BREAKING – Petrol depot explodes just outside of Stepanakert, Nagorno Karabakh, in the Haykazov area, amid locals queuing to fill up, unconfirmed reports of tens of casualties, killed and injured. No confirmation on numbers.
Video not official. pic.twitter.com/DtHRaF1hk0
— Nagorno Karabakh Observer (@NKobserver) September 25, 2023
Já esta quarta-feira, 27 de setembro, as autoridades arménias comunicaram a chegada de 50.000 refugiados vindos de Nagorno-Karabakh, o que corresponde a mais de um terço da população da região separatista, um número que cresce a cada hora que passa.
“Eles têm todo o direito de temer os próximos passos que o Presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, possa tomar”, escreveu Luis Moreno Ocampo esta semana no jornal The Washington Post. “O governo de Aliyev afirmou que não está a cometer limpeza étnica e garantiu ao mundo que a ‘reintegração’ trará prosperidade à região. Mas esta retórica soa vazia tendo em conta o que já foi feito. E as ambições do Azerbaijão vão além de Nagorno-Karabakh”, alerta. Por isso, “o mundo deve chamar o crime pelo seu nome próprio”, conclui. E cem anos depois, esse nome é – uma vez mais – “genocídio”.