Nagorno-Karabakh

Na primeira nação cristã do mundo, está a acontecer o segundo genocídio

| 27 Set 2023

Memorial de guerra em Shusha, Foto OSTILL

Memorial de guerra em Shusha, cidade em Nagorno-Karabakh. Foto © OSTILL.

 

Não é algo que se costume referir quando se fala da Arménia, mas sem dúvida que é uma informação importante para compreender o que se passa no enclave de Nagorno-Karabakh (internacionalmente reconhecido como parte do Azerbaijão, mas governado de facto por arménios desde o colapso da União Soviética): trata-se da primeira nação do mundo a ter adotado o cristianismo como religião de Estado, no início do século IV. E o enclave, ao qual os habitantes locais chamam Artsakh, é o território ancestral de 120 mil pessoas, dos quais 98% são arménios cristãos, e lar de inúmeras igrejas e mosteiros que estão entre os mais antigos do mundo.

Segundo a tradição judaico-cristã, foi no Monte Ararat – em território arménio – que pousou a mitológica arca de Noé, depois do Dilúvio, e se iniciou o repovoamento da Terra, recordam António Loja Neves e Margarida Neves Pereira na sua obra Arménia, Povo e Identidade. Poderia ter sido um bom presságio para a região, mas como berço civilizacional e ponto de passagem de pessoas e rotas comerciais, a Arménia sujeitou-se desde cedo às investidas de vários impérios guerreiros, dos persas e dos romanos ao Império Otomano e à Turquia. Como sobreviveram, então, os arménios? Mais ou menos subjugados, através de um forte sentido identitário, alicerçado sobretudo na religião e na língua (o alfabeto arménio foi inventado no começo do século V).

Sobreviveram, até, ao genocídio perpetrado pelo governo otomano entre 1914 e 1923, com o extermínio de dois milhões de pessoas, e que terá inspirado Hitler para o Holocausto (recorde-se que Francisco foi o primeiro Papa a usar a palavra “genocídio” para se referir ao assassinato em massa de arménios sob o domínio otomano durante a Grande Guerra 1914-1918 ,e que isso provocou a ira da Turquia, que continua a negar a extensão do massacre).

Quanto à disputa sobre Nagorno-Karabakh, ele é o conflito mais antigo na Eurásia pós-soviética, explica o think tank norte-americano Conselho de Relações Exteriores. Após a dissolução da União Soviética em 1991, a Arménia e o Azerbaijão travaram uma guerra pela região, deixando o enclave dentro do Azerbaijão nominalmente independente, mas com ligações estreitas à Arménia. No final da guerra, as forças arménias vitoriosas tomaram Nagorno-Karabakh e sete distritos próximos do Azerbaijão, causando um êxodo de mais de 600 mil azeris. Em 2020, o Azerbaijão invadiu e recapturou a maior parte do seu antigo território perdido no conflito anterior.

 

O que aconteceu nos últimos nove meses?

nagorno karabakh mapa, Conselho de Relações Exteriores

Um mapa ilustra a localização do enclave.

 

Nagorno-Karabakh ficou ligado à Arménia por uma estrada montanhosa conhecida como corredor de Lachin – a “estrada da vida”, como lhe chamam os residentes do enclave – e que em dezembro do ano passado o Azerbaijão decidiu bloquear, insistindo na sua soberania reconhecida internacionalmente para alegadamente impedir o fluxo de armas destinadas aos separatistas no enclave. Na prática, transformou o território numa prisão a céu aberto. Pior que uma prisão, pois nas prisões há água potável, comida, eletricidade, e acesso a cuidados de saúde. Ali deixou de existir tudo isso. Há quem diga que o transformou num enorme campo de concentração.

Além de armas, o Azerbaijão impediu a passagem de alimentos, bens e medicamentos. As famílias ficaram restritas a um pão por dia. O fornecimento de gás foi cortado, a água deixou de ser tratada. O número de abortos espontâneos registados quadruplicou à medida que o acesso a cuidados médicos diminuiu, e Nagorno-Karabakh comunicou a sua primeira morte por subnutrição no passado dia 15 de agosto, de acordo com o Provedor de Direitos Humanos nomeado pelas autoridades do enclave.

Num relatório publicado no início de agosto, o ex-procurador-chefe do Tribunal Penal Internacional (TPI), Luis Moreno Ocampo, alertou que existia já uma “base razoável” para acreditar que o Azerbaijão estava a cometer um genocídio contra os arménios étnicos em Nagorno-Karabakh através do bloqueio do Corredor de Lachin. Ocampo referiu-se à fome como “arma invisível do genocídio” e alertou que um dos quadros considerados na definição de genocídio da convenção da ONU – “infligir deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar a sua destruição física” – estava ali a ser desenhado.

 

E nas últimas semanas?

No dia 9 de setembro, a Arménia e o Azerbaijão anunciaram um compromisso para reabrir simultaneamente o Corredor de Lachin e uma estrada que liga Nagorno-Karabakh ao Azerbaijão. A 12 de setembro, responsáveis ​​da região separatista afirmaram que a ajuda humanitária da Cruz Vermelha Russa tinha chegado ao enclave através do Azerbaijão, mas não estava claro se o acesso ao Corredor de Lachin havia sido efetivamente restaurado.

Os dois países teriam chegado a um acordo provisório para pôr fim ao bloqueio do Corredor de Lachin, mas os governos continuavam divididos nos princípios críticos de um acordo duradouro. O primeiro-ministro arménio, Nikol Pashinyan, ofereceu-se para renunciar à reivindicação do seu país sobre Karabakh se os direitos dos arménios étnicos fossem protegidos através de mecanismos internacionais. No entanto, o Presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, recusou-se a concordar com isso, afirmando que as exigências de proteções internacionais são uma violação dos assuntos internos do Azerbaijão e que os arménios étnicos já estão abrangidos pelas proteções da constituição do Azerbaijão para as suas outras minorias étnicas.  Aliyev também declarou que qualquer arménio que não queira viver sob a soberania do Azerbaijão deverá partir.

 

Porque é tão difícil alcançar uma solução duradoura?

“Nagorno-Karabakh tem os ingredientes de um conflito intratável”, afirma o Conselho de Relações Exteriores. “Um pedaço de território contestado onde a soberania é difícil de determinar satisfatoriamente, profundas animosidades baseadas na etnia agravadas pelo trauma e pelas queixas de duas guerras, e rivalidades geopolíticas circundantes que tornam a mediação internacional e o compromisso excessivamente difícil.”

A radiografia religiosa na região também é complexa, uma vez que – como faz notar a revista Christianity Today – “a Arménia é aliada da Rússia Ortodoxa e do Irão [muçulmano] xiita contra os amigos do Ocidente, o Azerbaijão xiita, a Turquia [muçulmana] sunita e o Israel judaico”.

Além disso, há interesses políticos e financeiros da parte de outras nações em perpetuar o conflito. Por exemplo, o apoio militar total da Turquia ao Azerbaijão encorajou a investida de 2020 para retomar território, e o estatuto da Rússia como mediadora do conflito e força de manutenção da paz permitiram-lhe manter influência no Cáucaso.

Assim, não foi propriamente uma surpresa quando, a 19 de setembro, após nove meses de bloqueio ao território, e numa altura em que aparentemente tudo se preparava para que este fosse levantado, o Azerbaijão lançou uma nova ofensiva militar, que matou mais de 200 arménios e feriu, pelo menos, outros 400, e provocou um êxodo em massa dos habitantes da região, que receiam ser alvos de perseguição e de limpeza étnica. E quando esta segunda-feira, 25, quando havia já sido acordado um cessar-fogo, mas milhares permaneciam em filas intermináveis para sair do enclave, um tanque de combustível explodiu perto de Stepanakert, a maior cidade da região. De acordo com o mais recente balanço do Ministério da Saúde da Arménia, a explosão matou pelo menos 125 pessoas e feriu mais de 300. A causa ainda não foi determinada.

 

Já esta quarta-feira, 27 de setembro, as autoridades arménias comunicaram a chegada de 50.000 refugiados vindos de Nagorno-Karabakh, o que corresponde a mais de um terço da população da região separatista, um número que cresce a cada hora que passa.

“Eles têm todo o direito de temer os próximos passos que o Presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, possa tomar”, escreveu Luis Moreno Ocampo esta semana no jornal The Washington Post. “O governo de Aliyev afirmou que não está a cometer limpeza étnica e garantiu ao mundo que a ‘reintegração’ trará prosperidade à região. Mas esta retórica soa vazia tendo em conta o que já foi feito. E as ambições do Azerbaijão vão além de Nagorno-Karabakh”, alerta. Por isso, “o mundo deve chamar o crime pelo seu nome próprio”, conclui. E cem anos depois, esse nome é – uma vez mais –  “genocídio”.

 

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