
Desfile cívico-militar em comemoração do bicentenário da independência do Brasil. Foto © Marcelo Jr. Casal.
Em dados recentes, observamos que, no Brasil, os católicos correspondem a 50% da população, sendo, portanto, maioria entre os cristãos. Contudo, quando pensamos a religião enquanto parte do conjunto de forças políticas do país, são os evangélicos que protagonizam. Este protagonismo não é intempestivo; foi construído ao longo da redemocratização brasileira. Assim, os evangélicos não apenas saltaram de 6,6% para 31% da população em um pouco mais de 30 anos, como também alcançaram uma posição privilegiada no espaço público; e aqui entendemos espaço público em consonância com Magali Cunha (2019), no sentido de pólis presente na filosofia grega e repensado por Hanna Arendt como o espaço da aparência, em que as pessoas criam entre si um espaço em que podem aparecer umas às outras em qualquer tempo e lugar, sem que estejam, necessariamente, vinculadas à cidade-Estado em sua localização física. É nessa perspectiva que observamos os evangélicos atuarem no Brasil; enquanto digital influencers, entre os quais: Deive Leonardo, Thiago Brunet Yago Martins e Guilherme de Carvalho – para citar alguns. Ou ainda, enquanto digital influencers e políticos, como Nikolas Ferreira, que angariou 1,5 milhão de votos nas urnas em 2022 – sendo o deputado federal mais votado – e é acompanhado por 4,8 milhões de pessoas somente em uma das suas redes sociais.
Assim, o cristianismo que predomina no Brasil em termos de força mobilizadora, é o cristianismo evangélico. Não à toa que o foco dos debates presidenciais não é de ordem econômica, mas moral. Por essa razão é que Bolsonaro tem 63% das intenções de voto entre os evangélicos, enquanto Lula tem 31%. O Presidente sustenta sua candidatura com temas caros sobretudo à população evangélica; fala contra a descriminalização e legalização do aborto, a liberação das drogas e a identidade de gênero, atribuindo tais pautas ao candidato Lula, quando essas são, na realidade, matérias de competência do legislativo que, nos próximos anos, será ainda mais conservador. Bolsonaro e seus aliados, nesse sentido, alimentam uma narrativa de guerra cultural: “No Brasil está em curso uma batalha pelos corações e mentes das pessoas.” Entre os católicos, Lula tem 60% das intenções de votos, que podem ser explicadas pela influência da teologia da libertação, cuja ênfase está na libertação dos oprimidos em contextos socioeconômicos e políticos, já que é projeto de Lula reduzir – novamente – a pobreza, a desigualdade social e o desemprego do país, bem como aumentar o salário-mínimo, tornar a assegurar os direitos trabalhistas, implementar medidas de responsabilidade ambiental e fomentar a ciência e educação. Além disso, Lula enquanto Presidente do país, manteve bom relacionamento com a Igreja Católica e, mesmo anos após seu mandato, em 2020, foi recebido no Vaticano pelo Papa Francisco com quem conversou sobre um “mundo mais justo e fraterno”.
O ex-Presidente e atual candidato, ao contrário das disseminadas fake news, também fez cumprir, durante o seu governo, o artigo 5º da Constituição de 1988, que garante o direito à liberdade religiosa aos cidadãos brasileiros, sancionando, por exemplo, a lei nº 10.825 que assegura que instituições de qualquer religião sejam criadas, sem que o Estado possa negar seu registro, o que significou um aumento de templos evangélicos no país. Ademais, foi Lula quem sancionou a lei que instituiu o Dia Nacional da Marcha para Jesus em 2009, um dos maiores eventos que reúne fiéis evangélicos de todo o mundo. Deste modo, é injusto pensar que seu governo, ainda que tenha tido inúmeros problemas, sendo o maior deles a corrupção, perseguiu cristãos e, em particular, os evangélicos.
Nestas eleições, o incômodo que permanece é que parte dos evangélicos do país pensam ter encontrado no atual Presidente e em seus aliados políticos, a oportunidade para fundir as identidades cristãs e nacional, e é por esta razão que as pautas morais exercem maior influência na decisão de voto desse público eleitor. A primeira-dama, Michelle Bolsonaro, encarna esse desejo quando, em um pedido de desculpas pela fala polêmica do Presidente em relação a mulheres venezuelanas, diz que “como um país cristão, devemos acolher ao próximo”. Essa fala é, contudo, contrária ao Estado Democrático de Direito em que a laicidade é condição fundamental para sua manutenção; isto é, o Estado não deve assumir uma confissão religiosa e/ou apoiar determinada religião em detrimento de outra, mas fazer valer o direito constitucional da liberdade religiosa, pautando-se no princípio da dignidade humana.
Nesse sentido, em uma leitura atenta[1] do princípio de autonomia das esferas de Abraham Kuyper[2], podemos argumentar que, se cada esfera social – entre elas Estado, Igreja, Família – deve limitar-se mutuamente, isto é, deve respeitar a autonomia que cada esfera dispõe, não é coerente requerer que valores religiosos e familiares, por exemplo, tornem-se política de Estado – para o bem ou para o mal –, pois, desta maneira o Estado teria sua autonomia usurpada, assim como a própria esfera da Igreja e da família. Em última instância, insistir em fundir as identidades cristã e nacional é, em termos teológicos, sucumbir à idolatria; nas palavras do teólogo Paul Tillich[3]:
Uma fé que entende seus símbolos literalmente é idolatria. Ela chama de incondicional àquilo que é menos que incondicional. A fé, entretanto, que está consciente do caráter simbólico de seus símbolos dá a Deus a honra que lhe cabe (Paul Tillich, Dinâmica da Fé, 3ª ed., 1985, p. 37-38).
Notas
[1] Em minha dissertação de mestrado, realizei uma leitura crítica do mesmo princípio, demonstrando sua volubilidade a depender do contexto. Disponível em: https://repositorio.sis.puc-campinas.edu.br/handle/123456789/14878.
2 Abraham Kuyper foi um teólogo e estadista holandês do século XIX.
3 Paul Tillich foi um importante teólogo protestante do século XX.
Referências
Hannah Arendt, A condição humana. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 211.
Magali Cunha, Os processos de midiatização das religiões no Brasil e o ativismo político digital evangélico. Revista FAMECOS, 26(1), 2019.
Paul Tillich. Dinâmica da fé. 3ª ed. São Leopoldo, RS: Editora Sinodal, 1985.
Maria Angélica Martins é socióloga e mestra em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brasil. Pesquisa a relação entre fenómeno religioso e política com ênfase para o protestantismo histórico e o neocalvinismo holandês.
[1] Em minha dissertação de mestrado, realizei uma leitura crítica do mesmo princípio, demonstrando sua volubilidade a depender do contexto. Disponível em: https://repositorio.sis.puc-campinas.edu.br/handle/123456789/14878.
[2] Abraham Kuyper foi um teólogo e estadista holandês do século XIX.
[3] Paul Tillich foi um importante teólogo protestante do século XX.