
O que se espera de cada trabalhador e “chefe” na sua função? Como é que administrações e sindicatos concretizam a dignidade do trabalho, tendo em conta o seu lugar na sociedade? Foto © Christina Wocintechchat/Unsplash.
A esperança tem andado nas bocas do mundo, mas em tom menor. Cada vez mais como que se grita: dêem-nos razões para não perder a esperança! O Sínodo e o problema global da Ucrânia são dois exemplos de como vivemos um tempo que abala as convicções.
Precisamos de sentir passos firmes contra o que desilude e de que nos é possível dar esses passos, sem nos instalarmos a ver a procissão. Temos que desafiar todas as instituições que se devem preocupar com os valores humanos e manter permanente olhar crítico sobre o modo como esses valores se vão exprimindo, evoluindo e concretizando na vida social.
O valor mais sentido será o da justiça, quanto à defesa dos interesses de uns e de outros, em verdadeira simbiose (incluindo os interesses de quem “domina” de facto). Pretende-se um contínuo e arrojado estudo das organizações das comunidades humanas, quanto ao valor do respeito racional e do trabalho.
Foi assim com verdadeira e esperançosa alegria, que li no 7 MARGENS de 18 de Junho: “Debater o papel da Universidade Católica na investigação e implementação de novos modelos económicos e sociais”.
Várias vezes ouço referências ao aparente receio da Católica de perder o bom lugar no ranking se puser em questão o actual tipo de capitalismo, investigando e propondo novos modelos económicos à altura da dignidade humana. Mas, se revelar autêntico dinamismo e pluralismo crítico, todos aqueles que não têm medo de pensar, nomeadamente os cristãos e o clero português, passariam a dispor de contínuo enriquecimento das bases de diálogo sobre os valores a ter presentes nas complexas situações sociais. A simbiose também se aplica à vida «material» e «espiritual». Isoladas, nenhuma delas floresce.
Cada vez mais confundimos dignidade com riqueza, cuja expressão social anuncia poder e é vista como superioridade invejável. Há vários anos, fomos surpreendidos pela declaração de um Juiz do Supremo para quem os Juízes, para saberem evitar a corrupção, precisavam de obter um vencimento «supremo». Tirei a conclusão de que neste mundo todos deveríamos receber igual «vencimento supremo».
Na verdade, não será fácil justificar, perante a sociedade, as diferenças de vencimentos. Como se pode estabelecer que há trabalhos (diferente de empregos) mais valiosos, de tal modo que se justifique estarem no topo da tabela salarial? Qual a base da diferenciação?
Sem dúvida que há justificação, mas esta precisa de ser trabalhada pelas diversas associações que defendem os interesses de cada uma das partes, incluindo os destinatários dos serviços prestados. Convém que na sociedade se desenvolva a consciência da relativa importância das especializações e quais delas provocam efeitos mais gravosos se não funcionam como é esperado para o maior bem comum. E que se procure a maior clareza possível quanto à equivalência ou classificação de funções, não só teoricamente mas tendo em muita conta a eficiência dos trabalhadores e as medidas anticorrupção. O que se espera de cada trabalhador e “chefe” na sua função? Como é que administrações e sindicatos concretizam a dignidade do trabalho, tendo em conta o seu lugar na sociedade? A abundância de conflitos não se deverá a um quadro legal confuso (quiçá de propósito)?
Vale a pena lembrar a alegoria do corpo humano tão bem utlizada por S. Paulo (cap.12 da 1ª carta aos Coríntios), chamando a atenção para a “cabeça” que não faz nada sem “os pés” e vice-versa. Doutro modo, tudo pode ficar “sem pés nem cabeça”.
Quem duvidará da importância dos vários serviços de transporte, de saúde, repartições públicas, tribunais, etc., etc.? Sem esquecer, por exemplo, que aos serviços de saúde pertence toda a panóplia ecológica, a começar pela recolha do lixo… E sem esquecer as condições de trabalho seguro para todos.
Porém, o conceito de dignidade do trabalho baixou a um nível individualista e egoísta, por vezes violento e fruto de manipulação dos nossos vários sentimentos. Relativamente à opinião pública, falta um estudo sério, independente e corajoso. Que nos diz a Universidade Católica? Não ajudaria a todos a falar melhor sobre os valores da vida – e nomeadamente aos sacerdotes a fazê-lo de maneira prudente e interrogante?
Mesmo na sempre imperfeita sociedade humana, é possível mostrar o valor da justiça e proteger legalmente e eficientemente a justa remuneração e apreço do trabalho. Como também é possível e gratificante tirar prazer do serviço bem feito – que deve ser reconhecido.
Porém, o egoísmo promovido pelas próprias democracias, que não pensam e agem efectivamente pelo bem-comum, conseguiu deturpar o primeiro sentido de um dos seus «tesouros preciosos»: a greve – um conceito que não acompanhou a complexidade do actual desenvolvimento da sociedade. Deixou de ser um movimento de esperança na justiça para se tornar num desespero público e ameaçador do progresso.
No caso concreto dos diversos meios de transporte, a causa de greves deve ser honestamente estudada. Mas cada vez mais se sente a jogada política, a instabilidade sem esperança, o aumento da poluição atmosférica e sonora, a falta de confiança nos serviços públicos e a corrupção crescente.
Sindicatos e administradores ou patrões jogam com aquela maioria da população que menos capacidades tem para sobreviver. Idosos, crianças, doentes, grávidas, famílias inteiras… são verdadeiros reféns de ambos os lados, a benefício dos quais pagam impostos, além de serem punidos como faltosos devido à ausência de transporte público, de que muitos dependem a 100%. Reféns de exigências e intransigências. Reféns da ausência de princípios legais capazes de verificar, avaliar e corrigir o equilíbrio aceitável socialmente. Querer enriquecer ou herdar o produto do trabalho de outros, seja na pequena ou grande comunidade, devia significar poder ser mais eficaz para o crescimento do bem comum.
Muito felizmente, o 7MARGENS (no passado dia 19 de Julho), trouxe mais um incentivo de esperança: o Vaticano anuncia novas políticas de investigação “destinadas a contribuir para um mundo mais justo e sustentável”, que promovam a “dignidade do ser humano” e “o bem comum”.
E na medida em que todas as religiões concorrerem para espalhar pelo mundo a sensibilidade e apreço pelo “que vale mais a pena”, em todos os cantos do mundo se poderá sentir uma brisa da esperança.
Manuel Alte da Veiga é professor aposentado do ensino universitário.