Não somos deste mundo

| 23 Out 2022

O mundo não é algo que nos deva ser estranho. Foto © M / Unsplash

 

Talvez precisemos de reconhecer que não somos deste mundo, para que possamos verdadeiramente saboreá-lo e experiênciá-lo. É como quando estamos em viagem num país estrangeiro, tornamo-nos mais disponíveis para apreciar todas as coisas, a história do local, a comida, o ar, as pessoas, enfim. Se mergulharmos demasiado no mundo, deixamos de ser capazes de apreciá-lo, e nesse sentido, deixamos de ser capazes de viver humanamente. É que nós somos consciência, alma, interioridade acima de tudo. Ser humano é estabelecer uma distância radical entre a consciência que se é, e as coisas tal como nos aparecem; entre o domínio da interioridade subjetiva e o mundo. Ser humano é reconhecer que a verdade está dentro de nós, e que a verdade aparente das coisas exteriores é tanto maior quanto nós achamos que é, ou seja, quanto maior for o valor e o peso que lhes atribuímos nas nossas existências, colocando nelas, erradamente, o nosso fim existencial.

Isso está longe de querer dizer “fuga do mundo” ou diabolização da aparência e da materialidade; não é nada disso. É mesmo o inverso, porque sabermos estabelecer essa distância é o único modo de experienciarmos o melhor do mundo sem nos perdermos nele. Precisamente por isso é que devemos regularmente praticar o retiro e a renúncia, cultivar a interioridade, para que possamos ir sempre renovando a nossa faculdade de sentir e experienciar o mundo com a devida profundidade, sem nunca perdermos a capacidade de nos espantarmos e maravilharmos.

Se não estivermos bem instalados no centro objetivo e absoluto da nossa interioridade mesma, da nossa consciência, reconhecendo aí o nó absoluto que nos vincula absolutamente ao Infinito (que é nosso verdadeiro lugar e origem), não estaremos na posição certa para sentir, pensar, experienciar o mundo com a devida profundidade/intensidade, e para o pôr em perspetiva no seu devido lugar em relação a nós.

Há algo de extraordinariamente sublime e libertador em vivermos sempre como se fôssemos apenas visitantes deste mundo, peregrinos, cuja verdadeira vida e esperança se encontra necessariamente noutro lugar infinitamente mais essencial e mais vasto. Se temos algum compromisso, não é como o mundo, mas com outra, ou outras consciências que, como eu, não são deste mundo nem têm nele o seu fim último.

O mal está, por conseguinte, em imergir no mundo até à dissolução. Ou, o que é o mesmo, em fazer do mundo um absoluto em si mesmo, um dado, um facto puro que começa e acaba em si próprio. O mal está na idolatria da objetividade material, do atomismo discreto da realidade (ou seja, a crença de que a realidade última é descontínua, admitindo portanto lacunas de nada absoluto na sua constituição). No limite, o mal está na própria absolutização do mal, quer dizer, na crença de que o mal é constitutivo da própria realidade, e tem, e terá portanto sempre a última palavra. Abandonar a crença no Absoluto como Bem, ou Bem Absoluto, enquanto realidade infinita que contém e subjaz ao próprio mundo, contínua e não discreta, é permitir que o mundo e a consciência humana se deixem corromper progressivamente pela dúvida até à vertigem de um ceticismo sem saída, como se as fissuras de nada absoluto cuja realidade se admite minassem por fim toda a estrutura do Ser Absoluto, até à sua destruição (nadificação).

Mas como o mundo (materialidade absolutizada/idolatrada) não é jamais capaz de satisfazer completamente, nem de oferecer qualquer esperança real e redentora para o espírito humano, cedo ou tarde cai-se na desesperança e no relativismo, que por vezes não é senão uma fachada para a absolutização do mal, que é muito pior. Quer dizer, alega-se o abandono de um absoluto para logo de seguida tomar-se outro, quer seja o nada ou o próprio mal – que são basicamente o mesmo. Mas não se pode de maneira nenhuma fazer do nada ou do mal absolutos sem acabar por se ser engolido por eles (ou esvaziado) – i.e., sem se cair na angústia e no desespero, num nihilismo irredutível ou na apologia do absurdo como filosofia de vida.

Daí que, para os primeiros teólogos e padres do Cristianismo, em particular Santo Agostinho, o maniqueísmo é tão indefensável e pernicioso como a idolatrização do próprio mal, porque de facto, conceber o mal absoluto como opondo-se eternamente ao bem absoluto, é abrir a porta a um pessimismo fundamental relativamente ao próprio mundo, pois o mundo é o próprio mal. Porque a absolutização do mal absoluto, mesmo com o contraponto do bem absoluto, mina a crença neste último e na sua efetiva necessidade, inexorabilidade e ubiquidade ontológica. Lança a dúvida sobre a própria bondade e omnipotência desse Absoluto para criar um universo que, ainda que não seja o bem último, tem pelo menos um lugar nele, sendo portanto ele mesmo um certo bem. Além do mais, não é defensável a ideia de que dois absolutos possam coexistir num mesmo universo, ou coexistir de todo, se o Absoluto é, por definição, a própria Unidade Mesma sem par.

O único mal absoluto é crer no mal absoluto. O que é basicamente o mesmo que crer que o mundo é esse mal absoluto. Mas não, o mundo não é o mal, como tal não devemos fugir dele nem deixar de experienciar sem culpa o melhor, o mais belo, o mais sublime que ele tem (ainda que dessa beleza e sublimidade ele seja apenas devedor). O mal não é o mundo, mas a maneira como imputamos ao mundo uma ontologia que ele não tem efetivamente, como o reduzimos a uma objetividade que é princípio e fim em si mesma, esvaziando-o assim de um sentido transcendente. O mal é a idolatria do mundo, não o mundo tal como ele é. O mal é imputarmos a nós mesmos essa mesma (i)realidade, esquecendo, ou não querendo, ou não sabendo ver a infinita profundidade da nossa alma, e o quanto o nosso fim e consumação se encontra, não na confusão com esse mundo, mas no Absoluto que infinitamente o transcende sem deixar de lhe ser imanente.

 

Ruben Azevedo é professor e membro do Ginásio de Educação Da Vinci – Campo de Ourique (Lisboa).

 

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