
Folhas Caídas, instalação de Menashe Kadishman no Museu Judaico de Berlim. Foto © António Marujo
Nesta crise da covid tenho ouvido cada vez mais falar em medo, em “manipulação pelo medo” em “não ceder à estratégia do medo”. Parece que há por aí quem acredite que os governos têm um plano secreto de instalação do totalitarismo, e a covid é apenas uma excelente desculpa para a pôr em prática.
Quem será que está a pôr estas ideias a correr? Quem adere a elas, e porquê? Acreditam mesmo que os actuais governos europeus têm uma agenda totalitária?
Quanto aos outros, os que sabem que estamos a viver uma pandemia, que o vírus tem uma taxa de mortalidade de cerca de 1% e leva ao internamento hospitalar de cerca de 6% dos infectados, mas falam na mesma em “resistir ao medo”, pergunto: o que querem dizer com isso?
Será que “não ceder ao medo” e “manter a normalidade a todo o custo” significa aceitar que o vírus se propague em roda livre, usar para a covid apenas a capacidade médica e hospitalar que esteja disponível depois de tratar todas as outras doenças, e dizer “paciência, shit happens” no caso de a avó, ou a mãe, ou o filho diabético/com problemas cardíacos/com problemas pulmonares/com hipertensão lhes morrerem à porta do hospital por não haver lugar lá dentro? É esse o cenário que propõem?
(Nota: podemos discutir os números que dei acima, 1% de mortalidade e 6% de necessidade de internamento hospitalar – mas, sejam eles quais forem, há que fazer as contas: há camas e pessoal nos hospitais para acudir a todos os que precisarem de ajuda caso o vírus se espalhe livremente pela população?) Ou será que têm propostas para um combate mais eficaz contra o vírus? Venham elas!
Pessoalmente, não sinto medo da covid. Sinto responsabilidade: quero participar voluntariamente no esforço de conter o vírus. Não por mim – provavelmente conseguiria safar-me sem grandes danos – mas para proteger aqueles que possa involuntariamente contagiar.
Se me custa falar com máscara? Sim, custa – mas nada que se pareça com o que me custaria saber que uma vizinha de 80 anos morreu por causa da covid com que involuntariamente a contagiei. Se me custa não poder abraçar os amigos? Sendo esse o preço a pagar para a minha amiga asmática se poder sentir um pouco mais segura, seja. Se tenho pena de andar a adiar sine die os projectos de viagem? Claro que sim – mas repito a mim própria que é apenas um adiar. Se tenho pruridos em usar a app alemã para me avisar caso tenha estado perto de alguém com covid? Não, nada, porque (1) é voluntário, (2) tenho a certeza que não foi criado para espiar os meus movimentos, e – tão last quanto least – (3) não funciona no meu telemóvel jurássico… Se estou chateada por este ano o nosso Natal ser diferente do habitual? Não, nem um bocadinho, porque é uma decisão responsável que tomamos por amor: uma das pessoas com quem costumamos passar o Natal tem um problema gravíssimo de coração. Nem pensar em fazê-la correr risco de vida apenas porque nos custa desistir da tradição.
Podemos sempre escolher entre estar nisto como vítimas ou como cidadãos responsáveis. Cidadãos responsáveis que aceitam voluntariamente privar-se de parte daquilo a que estavam habituados para participarem no esforço de contenção deste vírus. E para não virem a carregar a culpa de terem contribuído para a morte da alguém que amavam. Ah, e quase ia esquecendo: o inimigo não é o governo. É o vírus. O vírus – e quem, perante os esforços de conter a pandemia e salvar vidas – aproveita para criar ainda mais confusão e teorias da conspiração.
Traduzo a mensagem da Angela Merkel sobre a situação em que a Alemanha se encontra neste momento, de uma gravação recente do seu podcast (vídeo / texto – ambos em alemão):

“Que pode cada um fazer para abrandar o contágio? Muito: respeitar a distância mínima de segurança, usar uma máscara e observar as regras de higiene.” Foto © Beat Ruest/Wikimedia Commons
“Pelo menos desde a semana que passou estamos cientes de que nos encontramos numa fase muito séria da pandemia do corona. Dia após dia, o número de novas infecções está a aumentar rapidamente. A pandemia está a alastrar de novo rapidamente, ainda mais depressa do que no início, há mais de meio ano. O Verão – relativamente mais descontraído – terminou, e agora esperam-nos meses difíceis. Nos próximos dias e semanas vai decidir-se como será o Inverno e como será o nosso Natal. Isso vai ser decidido por nós todos, em função daquilo que fizermos.
Entendo que isso significa o seguinte para nós:
Devemos fazer agora tudo o que estiver ao nosso alcance para evitar que o vírus se propague de forma incontrolável. Agora, cada dia conta. Para quebrar as cadeias de contágio, é necessário informar todas as pessoas que estiveram em contacto com alguém infectado. Os centros de saúde estão a fazer um trabalho extraordinário, mas, se o número de infectados se tornar demasiado alto, vão chegar ao limite das suas possibilidades.
Tendo isto em conta, que pode cada um de nós fazer para abrandar o ritmo do contágio? Muito, e a maior parte desde já pelos simples cuidados de respeitar a distância mínima de segurança, de usar uma máscara a tapar a boca e o nariz, e de observar as regras de higiene.
Mas agora temos de fazer mais. A ciência diz-nos claramente que a propagação do vírus está directamente ligada ao número de contactos, de encontros que cada um de nós tem. Se cada um de nós reduzir durante algum tempo e de forma substancial o número de encontros fora da própria família, então será possível parar e inverter a tendência actual de aumento de infecções.
É este o apelo que hoje faço a todos: reduzam substancialmente o número de pessoas com quem se encontram, tanto fora como dentro de casa.
Peço: prescindam que qualquer viagem que não seja absolutamente necessária, prescindam de qualquer festa que não seja absolutamente necessária. Por favor: sempre que possível, fique cada um em sua casa e na respectiva localidade.
Sei que peço duros sacrifícios, e que para muitos são renúncias difíceis. Mas é uma situação temporária, e de facto fazemos estes sacrifícios por nós próprios: pela nossa saúde e pela saúde de todos aqueles que queremos ver poupados a esta doença. Para não sobrecarregar o nosso sistema de saúde, para permitir que as escolas e os infantários permaneçam abertos. Para a nossa economia, e para os nossos empregos.
Vejamos: a que se deveu o nosso sucesso relativo durante os primeiros seis meses da pandemia? Foi termo-nos mantido unidos e termos respeitado as regras. Por consideração pelos outros, e por sensatez. De momento, é esta a ferramenta mais eficaz que temos para lutar contra a pandemia. E agora é mais necessária que nunca.
Muito obrigada a todos.”
Helena Araújo vive em Berlim e é autora do blogue 2 Dedos de Conversa, de onde se reproduzem estes textos, publicados com os títulos Não ter medo da covid e Angela Merkel sobre a situação actual da pandemia.