Dizei-me cristãos, que aqui estais, que tendes feito do meu Natal?
Injustiça partidária, isso não, não é Natal; miséria e desemprego, isso não, não é Natal;
perdão e concórdia, isso sim é Natal; tolerância e amizade, isso, sim é Natal.
Natal é paz, Natal é luz, é festa de anos de Jesus…
(do livro de cânticos religiosos da Igreja da Polana, Maputo. Citado de cor).

Deslocados por causa do terrorismo em Mahate (Pemba, Moçambique): “Não estão nas suas casas e, certamente, não celebram o Natal. Estão juntas por imperativos da vida. São deslocados de guerra. Não têm como pensar no Natal ou no dia da família. Isso é uma miragem.” Foto: Direitos reservados
O Natal foi sempre um momento de festa, dada a proximidade do novo ano, que traz sementes de esperança. Ainda assim, tem sido um momento de oscilações, de coisas boas e de coisas más. É sobre isso que falarei neste texto.
Moçambique é um país em constante reconstrução e que vive(eu) sempre entre guerras: as internas, antigas; as que vieram com a expansão europeia; a guerra civil nas suas diferentes versões; e a actual, vestida de terrorismo. Todas elas foram e são “o” terror. Não presenciei todas, embora algumas tivessem lugar numa altura em que eu já tinha consciência de mim, da vida ao meu redor e do mundo. Mas sei das suas vicissitudes.
Nos anos 1970 e 80 vivi os meus natais com muita alegria. Com poucos recursos, mas feliz. Em algum momento desse período, sobretudo nos inícios dos anos 80, por causa da crise económica que abalou Moçambique, já tive que passar a véspera do Natal numa bicha. Chamamo-la nós assim, ao que os outros chamam fila. Éramos um país dilacerado pela guerra colonial e pobre, como consequência da conjuntura económica mundial.
Nessas bichas, passava-se o dia todo, sem se saber a que se “bichava”. Muitas vezes era na esperança de poder comprar algum alimento, mas nem sempre isso acontecia. Já houve bichas que fiz e que deram em nada. Simplesmente, em algum momento, aparecia alguma autoridade a informar que não havia nada para vender. Lembro-me, também, de vezes, inúmeras, nas quais a bicha era feita com recurso a pedras ou a sacos de plásticos ou qualquer tipo de cesto. Cada um sabia qual é que era o seu pertence. Havia muito respeito pelos bens alheios.
Desse imenso respeito, recordo-me que, mesmo que com pouco, os natais, em algumas famílias, eram passados com alegria. Elas se juntavam numa mesma casa para comemorar a chegada do final do ano, na espera da possibilidade de uma vida melhor.
Quem saísse da sua casa para a outra, não tinha preocupação com a sua porta. Não precisava de a trancar. Encostava-a, apenas. Isso acontecia nas regiões livres da guerra. Nas outras, vivia-se ao deus dará. Dizia que as famílias passavam juntas, num mesmo local, numa mesma casa, com pouco ou com muito espaço. Sempre dava para todos. Podiam ser muitos ou poucos, mas sempre se juntavam. Na verdade, na maior parte das vezes, era sempre muita gente; porque as nossas famílias são imensas. Se não forem de sangue, os vizinhos também são família e os que tivessem a sua longe, juntava-se com os amigos de perto, que eram também a são família.
E repito, éramos pobres, com muitas carências, éramos felizes e partilhávamos carinho, alegria e o pouco que havia para comer. Esperávamos o ano todo para ter um par de sapatos novos ou um vestido ou qualquer outra peça de roupa nova. Essas coisas não eram compradas ao longo do tempo ou do ano, porque não havia onde o fazer.
Não sei se a ideia de junção tinha alguma origem religiosa. Não sei se vinha da tradição católica, uma vez que no país há muitas outras tradições religiosas. De um modo geral, com algumas excepções, era um momento alegre, dada a proximidade com a mudança de ano.
Mas vale dizer que Moçambique, país nascido em 1975, é laico e, nesse sentido, para o Governo do dia, o Natal não era a celebração do nascimento de Jesus Cristo. O dia 25 de Dezembro, foi, pela Lei 11/82, de 11 de Dezembro, decretado Feriado Nacional. Segundo esse documento, esse dia “é, pois, dedicado ao amor, à fraternidade, à amizade, à solidariedade e à união entre pais e filhos, avós e netos, entre todos os parentes e amigos que nesse dia se reúnam para compartilharem da felicidade comum de pertencerem a uma mesma família, para reforçarem os seus laços e consolidarem as suas relações”. É um documento aprovado pela Comissão Permanente da Assembleia Popular.
Hoje, infelizmente, com muito o que comprar e onde comprar; com algumas carências para as famílias, mas com mais possibilidades para o país, os natais já não são os mesmos. O respeito, em muitos lugares, acabou. O Natal é uma boa época para a ladroagem, para assaltar casas, em nome da busca do que comer em celebração do ano novo que se aproxima. Algumas famílias se juntam, nas cidades e em algumas partes do interior do país. Mas quem sai de casa, deve garantir que, para além de gradear a sua casa, terá de deixar algum olheiro. Além disso, no Norte, onde há guerra, a dos terroristas, as famílias se juntam em campos de acolhimento. Não estão nas suas casas e, certamente, não celebram o Natal. Estão juntas por imperativos da vida. São deslocados de guerra. Não têm como pensar no Natal ou no dia da família. Isso é uma miragem.
É infelizmente assim que muitas pessoas passarão o Natal. E, claro, porque a muitos ainda resta solidariedade e compaixão, não passarão o seu Natal como desejariam, porque ficarão sempre com a imagem dos que não têm como o passar. E este ano, em abono da verdade, não só não têm como o passar, os deslocados de guerra, como também os funcionários públicos, reféns de uma nova tabela salarial anunciada, mas não viabilizada.
Há categorias profissionais que não têm salário há cerca de três meses e, claramente, não terão o seu décimo terceiro salário. Os médicos têm estado em greve, há cerca de um mês, e imagine-se todas as mazelas que isso traz. É assim que se passará o Natal que o filósofo moçambicano Severino Ngoenha e em co-autoria com Carlos Morgado, designam o Natal (ultra) cínicos.
Certamente que, no país já houve imensos natais passados em situação de guerra, das diversas acima mencionadas. Mas coloquei olhos na actual. É o tempo do qual sou conscientemente contemporânea. E, olhando para trás, para o que suponho devesse ser Natal, julgo que nunca tivemos um em Moçambique. E não é pela existência de diferentes confissões religiosas. Não é porque na cultura e religião banto não se celebre o Natal de Jesus, porque a sua representação de celebração é feita através das banjas de celebração das memórias dos ancestrais, cuja índole se baseia na alegria e na caridade. Não há Natal porque, tal como me recordou a música acima citada, que vem da minha infância catequética naquela igreja, só haverá Natal se houver justiça, tolerância, perdão, empregos que paguem os prometidos salários e partilha da celebração da vida. Nós temos vivido de guerra em guerra e de morte em morte e não são poucas as vezes que nos falta luz. Não temos Natal, embora o dia 25 de Dezembro seja Feriado Nacional, para celebrar a família.
Gostava de ter escrito um texto feliz, mas ele não caracterizaria o verdadeiro Natal da maioria dos moçambicanos.
Sara Jona Laisse é docente de Técnicas de Expressão na Universidade Católica de Moçambique – Extensão de Maputo, e integra o Graal- Movimento Internacional de Mulheres cristãs. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br.