
Nélida Piñon na cerimónia em que recebeu a comenda da Ordem Padre José de Anchieta (Rio de Janeiro, Brasil, 6 Março 2017), na abertura do ano Mulheres na Literatura da Academia Carioca de Letras. Foto © Fernando Frazão/Agência Brasil; CC BY 2.0, via Wikimedia Commons
“Morre primeira mulher presidente da Academia Brasileira de Letras”, dizia neste domingo, dia 18, um título de primeira página do jornal O Estado de S. Paulo. Na notícia da morte da escritora Nélida Piñon, outros jornais brasileiros, como, por exemplo, o Correio Braziliense ou A Tarde, destacaram igualmente essa faceta pioneira. A Folha de S. Paulo também o lembrou, mas preferiu assinalar no título que a morte tinha ocorrido aos 85 anos e em Lisboa, no sábado, dia 17. O diário paulista também destacou que, “premiada, a escritora era um dos nomes mais internacionais da literatura brasileira”.
O Estado de Minas recordou dois prémios: “O Juan Rulfo, considerado o Nobel da América Latina, e o Príncipe das Astúrias” na chamada de primeira página por baixo de um título menos comum: “Vida intensa, letras eternas”.
O Globo preferiu sublinhar a “doçura e força dedicada às palavras”. Para o diário do Rio de Janeiro, onde Nélida Piñon nasceu, numa família originária da Galiza, a escritora é “dona de gentileza proporcional à força de sua voz em causas como o feminismo e o combate ao etarismo”.

Guilhermina Gomes, directora editorial da Temas e Debates – que publicou Um dia chegarei a Sagres (2021), Uma furtiva lágrima (2019), Filhos da América (2017), A República dos Sonhos (2014) e Livro das horas (2013), entre outros títulos da escritora – evocou também o envolvimento cívico de Nélida Piñon: “Humanista, generosa, interventiva, uma artista do pensamento, teve uma voz firme contra a censura e a ditadura no Brasil. Feminista, afrontou com coragem os modelos tradicionais, celebrando e escrevendo a liberdade de pensar”.
Para Guilhermina Gomes a “autora amada por nós, seus editores há mais de duas décadas”, é “um ícone da grande literatura de língua portuguesa, internacionalmente reconhecida e premiada”. No DN, Maria João Martins recordava que ela amava Portugal.
A directora editorial da Temas e Debates escreveu ainda que Nélida Piñon, “com humildade, disse-se brasileirinha, mas levou-nos numa viagem homérica, contando-nos os seus pensamentos sobre a leitura, a sua paixão pela escrita, a sua relação vital com a literatura, a sua visão não apenas da mulher brasileira, mas de todas as mulheres desde tempos remotos, e sobretudo a importância que a memória assume, numa viagem que simboliza todas as viagens do mundo”.
Citada pelo Correio Braziliense, Nélida Piñon, referindo-se ao seu ofício, afirmou que “a literatura tem uma voz, parte de algum lugar, de uma geografia, mas não circunscrita aos limites geográficos e sim de uma geografia que tem seus mitos, sua trajetória, sua língua, sua formação”.
Desde a infância, Nélida Piñon (nascida em 3 de maio de 1937) aventurou-se a viver em “épocas pretéritas, fundacionais”, tal como escreveu em “Palavras ao vento”, incluído em Uma furtiva lágrima. “Foram os saberes e a imaginação que me distanciaram das paredes de casa”, lembra, acrescentando: “Menina, sonhei em jamais dormir uma segunda noite sob o mesmo teto”. Manteve esse mote, “escudada pela imaginação”.
Ainda que “fôssemos todos nós sujeitos ao ardil dos dias e da memória esgarçada, nascemos para sonhar o impossível”, observa a escritora no texto “Deus”, também inserido na obra citada, em que se diz devedora “dos humildes, dos peregrinos, dos anacoretas do deserto, do século IV. Dos gestos e das palavras originários do apostolado de Deus, e são indicadores da frequência civilizatória do meu coração. Dos seres que reverberam ao meu lado e representam a história da humanidade”.
É neste texto que surge uma indagação para a qual Nélida Piñon poderá ter encontrado resposta: “Que chances temos nós, estrangeiros e aflitos, de mergulharmos no regaço de Deus em nome da esperança?”