
Abusos sexuais. Ilustração original de © Catarina Soares Barbosa para o 7Margens.
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar!
Permiti que, ao revisitar esta Cantata da Paz – verso poético de Sophia, imortalizado por Fanhais, cantando-a em 1970, para dar voz ao silêncio – permiti, dizia, que a aplique, agora, ao «Terramoto» interior que abalou o coração da Igreja e cujas constantes réplicas vão golpeando os nossos corações crentes.
Dirá assim, e pouco mudando:
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
É preciso sanar, curar e sarar
Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios de abusos na Igreja (não da Igreja) / (da fome)
O caminho da injustiça
A linguagem do terror
Abusos de poder e de confiança / (a bomba de Hiroxima)
Vergonha de nós todos
Reduzir a cinzas
A carne das crianças
Do silêncio instalado / (D*África e Vietname)
Sobe a lamentação
Das vidas destruídas / (dos povos)
Das vidas destroçadas / (dos povos)
Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado a ser sanado / (organizado)
Ora, é para esta cura que a Palavra, hoje proclamada, nos é oferecida; precisamente a nós Igreja, chamada a ser “hospital de campanha” – expressão tão cara ao Papa Francisco – “hospital de campanha”, também dentro de portas.
“Não sabeis que sois Templo de Deus e que o Espirito de Deus habita em vós?”
Sim, o lugar sagrado é a nossa vida; o Templo somos nós!
Esta vida que é exaltante e ao mesmo tempo lugar de fragilidade, lugar de dor. Esta vida que, por vezes, nos custa abraçar, aceitar, entender…
Esta vida que não existe em abstracto, mas que construímos dia a dia;
Vida de busca e de procura que, em cada um de nós, quotidianamente se efetua…
Então, tenho de olhar para a minha vida e para a vida do outro, como lugares sagrados.
Tenho de olhar para a minha vida e para a vida do outro com outros olhos (a propósito relembro Torga que afirmava — “sem amor, nenhuns olhos são videntes”),
Tenho de olhar para a minha vida e para a vida do outro com outra esperança, com outra veneração;
E saber que:
Nenhuma vida (mesmo a dos abusadores) é para deitar fora;
Nenhuma vida é para excluir;
Nenhuma vida é para descartar;
Nenhuma vida é para ser pisada, abusada e muito menos tirada.
Então tenho de olhar para toda a vida e para a vida toda com um coração diferente, um coração novo. E só Jesus o sabe fazer e ensinar.
Nele, por Ele e com Ele:
Rejeitamos a violência, a força do mais forte, a lei do “olho por olho, dente por dente”; Nele, por Ele e com Ele:
Queremos romper os ciclos viciosos da vingança e os becos sem saída dos julgamentos sumários na praça pública. E ser capazes do perdão, da compaixão, aceitando as humilhações, relativizando-nos, porque nos purifica do ídolo que somos tentados a ser;
Nele, por Ele e com Ele:
Queremos dar o primeiro passo, pedir e dar perdão.
Recomeçar sempre, voltar a coser, corajosamente, o tecido da vida continuamente rasgado…
Neutralizando a espiral da vingança, inventando caminhos novos, através da criatividade do Amor, que não paga na mesma moeda, nem replica nos outros aquilo que sofre.
Por isso e para tanto, pedimos que o Espírito de Deus, que nos habita, nos fortaleça e nos dê a capacidade de arriscar uma outra Sabedoria que, muitas vezes, é loucura aos olhos do mundo, mas que outra coisa não é – como nos desafia o Papa Francisco, bem como o lema diocesano para a Quaresma que se avizinha – Abraçar, até ao fundo e ao fim, a Cruz do Senhor!
Vemos, ouvimos e lemos:
“Não odiarás do íntimo do coração”;
“O Senhor é clemente e cheio de compaixão”;
“Tudo é vosso, mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus”;
“Sede perfeitos, como o vosso Pai é Perfeito”.
Vemos, ouvimos e lemos:
Não podemos deixar de proclamar;
Não podemos deixar de acreditar;
Não podemos deixar de atuar;
Não podemos deixar de ser Igreja;
Por Cristo, com Cristo, em Cristo! Amem.
Fernando Silva é pároco de Cedofeita (Porto). Este texto corresponde à homilia no VII Domingo do Tempo Comum, 19 de Fevereiro de 2023. Esta celebração foi transmitida pela RTP.