
77 por cento dos atiradores em massa conseguiram as armas usadas nos seus atos criminosos em lojas perfeitamente legais. Foto © Pixelshot.
O tiroteio que resultou no assassinato a sangue frio de 19 crianças pequenas e duas professoras numa escola do ensino básico da cidade de Uvalde (Texas, Estados Unidos da América), nesta terça-feira, 24, é sem dúvida devastador. Mas a frequência deste tipo de matanças, mais ou menos mortíferas, corre o risco de comover e se banalizar.
Na verdade, é também devastadora e inquietante a impotência dos mais altos responsáveis políticos para debelar o problema. Em lugar de regredir, este fenómeno dos atiradores tem vindo a crescer, como revelava um relatório dado a conhecer no início desta semana pelo FBI.
E não se pense que as armas de assalto que tais atiradores utilizam são traficadas em algum negócio clandestino ou de vão de escada: pelo contrário, 77 por cento dos atiradores em massa conseguiram as armas usadas nos seus atos criminosos em lojas perfeitamente legais, através de compras comuns, que requerem apenas que os compradores tenham 18 anos e as possam pagar. O jovem que destroçou a escola de Uvalde esteve aparentemente à espera de completar a idade mínima para adquirir as armas do crime.
Uma posição fraca do episcopado dos EUA
Se se tratasse de um problema simples, por certo que algo se teria já desbravado. Mas não é. Contudo, por muitos fatores a considerar, há um que tolhe a sociedade e mantém cativo o sistema político dos Estados Unidos: a National Rifle Association (NRA), que defende os interesses dos portadores e, mais amplamente, do setor e do poderosíssimo lobby das armas. Investimentos de dezenas de milhões de dólares em campanhas políticas, sobretudo dos Republicanos, ao nível estadual e federal (só para as duas campanhas de Trump terá sido investida uma verba que não andará longe dos 70 milhões) são naturalmente para cobrar. Não são meros gastos. E assim, todos os esforços de restringir o acesso às armas deparam com obstruções, pressões e impedimentos. Todos os presidentes lamentam, rezam, desejam e prometem. Na hora de agir, fica praticamente tudo no ponto em que estava. Sejam os vermelhos, sejam os azuis.
E foi também assim que o Presidente Joe Biden, no discurso à nação, esta terça-feira, 24, depois de citar a Bíblia e de enaltecer as vidas destroçadas, pouco mais fez do que emitir desejos e fazer perguntas como estas: “Porque é que este tipo de tiroteios em massa raramente acontece noutros lugares do mundo?”; “Quando, por amor de Deus, faremos o que todos sabemos que precisa de ser feito?”; “Como nação, temos de nos questionar: quando é que vamos fazer frente ao lobby das armas?”
Neste contexto, parece limitado o modo como o episcopado católico dos EUA se posiciona face a este caso e, em geral, face ao problema das armas (comércio, tráfico, condições de uso). O comunicado emitido em nome da Conferência dos Bispos (USCCB), limita-se a meia dúzia de linhas e poder-se-ia considerar que diz o essencial: rezar pelos que morreram, curar as feridas dos que sobreviveram ou foram de algum modo afetados, exprimir a necessidade de “fazer mais para entender essa epidemia de maldade e violência e implorar aos nossos representantes eleitos que nos ajudem a agir”.
Mas onde estão as questões do controlo ou do tráfico de armamento? E sobre a perversão que constitui o direito à posse de armas?, comentou, de imediato, no Twitter, o jornalista inglês Austen Ivereigh,
Como promover uma cultura de convivência, de tolerância, de empatia, em vez de uma cultura assente no armar-se para se defender dos outros?, poderia ainda perguntar-se.
“O direito a usar arma não veio do Monte Sinai”

Individualmente, alguns bispos reagiram de forma assertiva. Daniel Flores, que pastoreia a diocese de Brownsville e dirige a Comissão de Doutrina da USCCB, contesta aqueles que entendem que o problema não está nas armas, mas nas pessoas que as usam (mal) e acrescenta: “Nós sacralizamos os instrumentos de morte e, depois, supreendemo-nos quando a morte os utiliza”.
Nesta linha, o cardeal Cupich, de Chicago, num comentário inserido no site da diocese, perguntava-se se, nos EUA, (não) se preza mais os instrumentos de morte do que o futuro das crianças, acrescentando: “A Segunda Emenda [que permite a posse de armas a qualquer pessoa] não veio do Sinai. O direito de usar armas nunca será mais importante do que a vida humana. Os nossos filhos também têm direitos. E os nossos representantes eleitos têm o dever moral de protegê-los”.
O arcebispo Gustavo García-Siller, responsável da diocese a que pertence Uvalde, lembrou-se de fazer também em mensagem colocada no Twitter um pedido ao Papa Francisco para que se recordasse da tragédia que se abateu sobre a comunidade local.
Francisco, na audiência desta quarta-feira, atendeu o seu pedido e rezou, com as milhares de pessoas que estavam na Praça de S. Pedro, pelas vítimas, crianças e adultos. Mas, indo ao encontro daqueles que fazem notar que não bastam orações, acrescentou: “É hora de dizer ‘basta!’ ao tráfico indiscriminado de armas”, disse o Papa. “Vamos todos trabalhar para garantir que estas tragédias nunca mais aconteçam.”
As tensões que atravessam a sociedade e a esfera política nos EUA perpassam igualmente o espaço do catolicismo, levando a que haja a perceção de que a vida humana merece posicionamentos mais assertivos quando se trata das questões do aborto ou da eutanásia e menos quando ela se joga em terrenos socioeconómicos e políticos. Os comentários às mensagens dos bispos nas redes sociais, naquele país, são disso mostra eloquente.