
Obviamente, nada tenho contra o facto de muitos padres, religiosos, bispos, cardeais ou papas serem homossexuais. Mas tenho muito contra a homofobia primária reinante na Igreja, registada em letra de lei nos documentos oficiais e nos acalorados discursos de muitos dignitários eclesiais. Foto: Pormenor da capa do livro.
Embora tenha sido publicado em Portugal em 2019, só agora me atrevi a ler o famoso livro No Armário do Vaticano, escrito pelo jornalista francês Frédéric Martel, que levou por diante uma intensa investigação sobre homossexualidade e poder no interior e nas franjas do Vaticano.
O livro deixou-me estupefacto! Não por haver padres, bispos, cardeais ou papas homossexuais, pois isso é uma realidade tão natural como a água que corre da nascente, tendo em conta que os cargos na Igreja não estão imunes à distribuição das orientações sexuais da humanidade. O que me deixou perplexo foi a dimensão do fenómeno, muito para lá do que acontece em outros contextos sociais. Isso significa que é o próprio sistema celibatário que promove a superabundância do fenómeno. O celibato funciona, portanto, como uma máscara de que muitos homossexuais necessitam para que a sua orientação sexual não venha a levantar suspeitas. O perfil destes homossexuais é bastante claro: são pessoas que rejeitam a assunção pública da sua orientação sexual, refugiando-se no celibato eclesial. Vivem no armário e dele não pretendem sair, usando o celibato como proteção.
Obviamente, nada tenho contra o facto de muitos padres, religiosos, bispos, cardeais ou papas serem homossexuais. Mas tenho muito contra a homofobia primária reinante na Igreja, registada em letra de lei nos documentos oficiais e nos acalorados discursos de muitos dignitários eclesiais. E tenho também muito contra a hipocrisia que um tal sistema esquizofrénico promove. O livro de Martel vem pôr a nu essa mesma hipocrisia. Uma das regras não escritas que subjaz ao sistema vaticano é a de que, de um modo geral (há exceções, evidentemente), os mais homofóbicos são também os homossexuais praticantes que levam uma vida dupla. Bradam aos quatro ventos regras que eles não cumprem. Impõem sobre os demais fardos que eles se escusam a carregar. Vivem de aparências!
Não os censuro por terem vida sexual ativa, mas repugna-me que sejam os mais acérrimos defensores de um celibato que não cumprem e os mais vociferantes homofóbicos, condenando, sem a mais pequena atenção à realidade concreta e aos estudos que dela têm feito investigadores honestos, não só as relações homossexuais mas até a própria tendência homossexual, como se isso correspondesse a uma decisão pessoal.
Regressemos ao Evangelho. Vejamos como Jesus falava dos hipócritas que se instalam na cátedra de Moisés: “Atam fardos pesados e insuportáveis e colocam-nos aos ombros dos outros, mas eles não põem nem um dedo para os deslocar. Tudo o que fazem é com o fim de se tornarem notados pelos homens. Gostam de ocupar o primeiro lugar nos banquetes e os primeiros assentos nas sinagogas. Gostam das saudações nas praças públicas e de serem chamados ‘mestres’ pelos homens. Quanto a vós, não vos deixeis tratar por ‘mestres’, pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos” (cf. Mt. 23).
Neste texto está tudo dito! Ei-los que se exibem de vestes esplendorosas para serem notados por todos e afirmarem o seu poder efetivo sobre os outros, ocupando os primeiros lugares nos espaços públicos e sendo tratados por monsenhor, excelência, eminência, etc., esquecendo que afinal um só é realmente eminente e nós somos todos irmãos. Jesus estipula qual o princípio que deve orientar o poder na Igreja: “O maior de entre vós será o vosso servo” (Mt. 23, 11). Vale a pena ler atentamente todo o capítulo 23 do Evangelho de Mateus. Reflete sobre a natureza da Igreja e a forma como ela deveria organizar-se, sobre a atitude dos que nela têm mais responsabilidades, desferindo sobre os hipócritas as mais severas reprovações: “Ai de vós, (…) hipócritas, porque sois semelhantes a sepulcros caiados: formosos por fora, mas, por dentro, cheios de ossos de mortos e de toda a espécie de imundície! Assim também vós: por fora pareceis justos aos olhos dos outros, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidade” (Mt. 23, 28).
Poderíamos pensar que o problema se coloca apenas no plano do comportamento individual. Nada mais errado! O problema é sistémico! É, portanto, o sistema que promove este tipo de situações que deve ser profundamente repensado. É preciso regressar à Igreja das origens, à simplicidade da vida comunitária, à igualdade fundamental entre todos os membros da comunidade (“somos todos irmãos”), ao celibato facultativo, a uma moral sexual que não imponha fardos insuportáveis que ninguém consegue carregar…
Só nos resta reconhecer tristemente que a Igreja produziu durante o século XX textos profundamente farisaicos – legalmente rígidos, racionalmente não sustentados e moralmente autoritários – que merecem o nosso repúdio. Basta-me recordar aqui apenas alguns (estão todos online no site do Vaticano):
- A encíclica Humanae Vitae (1968) foi a primeira grande inflexão à fabulosa abertura não dogmática do Concílio Vaticano II; condena sem apelo nem agravo o uso dos métodos anticoncecionais artificiais recorrendo a uma argumentação falaciosa, sem qualquer respaldo racional;
- O documento Persona Humana (1975), que parte de uma antropologia inteiramente pré-concebida sem atender à realidade concreta da vida dos seres humanos reais, como se estes fossem anjos e não pessoas humanas;
- A homofóbica “Carta aos bispos sobre o atendimento pastoral das pessoas homossexuais” (1986), assinada pelo cardeal Ratzinger, onde se define que não apenas o ato homossexual é pecaminoso, mas a própria tendência homossexual é “objetivamente desordenada”; em suma: uma deficiência humana;
- A “Instrução sobre o respeito da vida humana nascente e a dignidade da procriação” (1987) vem declarar imorais todos os processos de fecundação medicamente assistidos, recusando aos casais católicos inférteis qualquer possibilidade de paternidade e maternidade genética;
- O documento “Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais” (2003), também ele assinado pelo cardeal Ratzinger, o qual pretende justificar o injustificável e exercer pressão sobre as estruturas políticas dos estados de modo a não ser aprovada legislação que consagre o direito dos homossexuais a viverem em comunhão de vida legalmente reconhecida;
- O documento “Homem e mulher os criou” (2019), que reflete sobre as questões de género, defendendo a insustentável posição de que o ser humano foi criado binário, exclusivamente heterossexual e com papéis de género bem definidos; mais uma vez o problema fundamental desta doutrina é ignorar os avanços científicos e a realidade concreta do ser humano, erigindo ao mais elevado patamar uma suposta “natureza humana” definida a partir de ideologias ultraconservadoras e preconceitos milenares.
A lista já vai longa, mas estamos longe de a ter esgotado. As enormidades doutrinais da Igreja têm causado um mal-estar generalizado e o abandono da Igreja em massa, por parte de jovens e de pessoas culturalmente esclarecidas. Os que investiram o seu tempo e o seu poder para produzirem estas pérolas da discriminação e estes fardos insuportáveis são responsáveis pela debandada geral dos crentes. Muitos dos que bateram com a porta continuaram a necessitar de um ambiente espiritual onde pudessem viver a sua fé. Mas a Igreja onde cresceram já não se afigura terreno propício onde é possível reconciliar-se com a vida. Torna-se, portanto, urgente alterar profundamente o conteúdo dos documentos oficiais reconhecendo que foram redigidos sob a batuta de uma rigidez desumana, longe da liberdade a que a espiritualidade genuinamente cristã nos chama.
Jorge Paulo é católico e professor do ensino básico e secundário.