“No meio do caminho”: pedras, sombras, maridos e mulheres da noite

| 24 Mar 20

[…] No meio do caminho tinha uma pedra […]
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra […]
De repente, eis que um Meteóro e dos grandes, cai na minha frente, não tenho como evitá-lo, nem mesmo, fingir que não está ali, mas então ao observar melhor, percebo, que é mais que uma grande pedra no meu caminho […]

Carlos Drummond de Andrade

 

As pedras

Há um fenómeno de índole espiritual, o marido ou a mulher da noite, de que se fala, em surdina, em Moçambique. Trata-se de um cônjuge invisível, com o qual um parceiro não estabelece um pacto, mas existe entre ele e uma outra pessoa, homem ou mulher, uma ligação marital.

Há dias li sobre isso no livro O Lado Oculto, da moçambicana Lídia Mussá, com entrevistas em que aborda pessoas vítimas do fenómeno, que se referem a casos vividos na primeira pessoa. Além disso, sei que, em meados de Março, estará em cartaz, em Maputo, uma performance sobre essa manifestação, que integra poesia, música e dança da autoria do escritor moçambicano Leko Khululeko. Isto fez-me pensar no quão necessário é falar-se sobre este assunto.

De um modo generalizado, quando se menciona essa ocorrência, refere-se que ela deriva de um trato estabelecido entre vivos e mortos; através do qual – dada a existência de problemas mal resolvidos entre famílias, tais como, por exemplo, casos de dívidas, de tricas ou de pagamento a feiticeiros para se ter um medicamento ou para se ficar rico – determinados assuntos são levados para além da morte. Quero dizer que o problema persiste e há que o resolver. Uma das saídas, para quem esteja vivo, tem sido a entrega de uma criança aos espíritos das pessoas falecidas, ora envolvidas na intriga. Essa pessoa, desde criança, até mesmo depois de adulta é possuída a “bel-prazer” pelos espíritos.

 

O marido ou a mulher da noite

Marido ou a mulher da noite, tal como a designação o diz, actua à noite. Ele ou ela possuem o visado provocando nele sensações de um acto sexual a ser estabelecido entre ambos, espírito de um e corpo do outro. O possuído tem a percepção de ter sonhado, mas também tem uma forte impressão de que o facto aconteceu verdadeiramente.

Esse possuído é visto na sua vida, desde cedo, como um ser problemático e só mais tarde, quando finalmente se dá conta, verifica que, de noite, têm acontecido coisas estranhas e difíceis de explicar ou que, mesmo referindo-se a eles, são difíceis de ser aceites por quem não os conhece ou não deseja abordar o mundo dos espíritos.

Falei sobre o facto com algumas pessoas e foi-me explicado que, na maior parte das vezes, a pessoa que tiver sido entregue aos espíritos, de um modo geral, não se casa ou, quando se dá o caso de contrair matrimónio, é mal sucedida neste: tem sempre problemas com o cônjuge ou passa, mesmo, a ter problemas de fertilidade, uma vez que sofre tormentos do seu marido ou esposa espiritual. Esses factos têm sido uma pedra ou uma sombra na vida da vítima. Impedem-na de desfrutar a vida com alegria.

 

As sombras

A questão que se coloca é que alguns dos possuídos contam corajosamente à sua família sobre o fenómeno de que têm sido vítimas, mas há casos em que as famílias se escusam a abordar o assunto, pelo facto de não se verem em condições de informarem que entregaram aquela pessoa a determinados espíritos. Vezes há em que as famílias não tomam em consideração o facto, por terem receio de explicar a razão e a origem da sua existência.

Esta matéria tem sido muito pouco abordada em fórum público. Pouco se escreve sobre o assunto. A obra acima mencionada, bem como a performance, são casos raros, mas a matéria carece de mais ampla abordagem, uma vez que atormenta a vida das suas vítimas, cansadas de sofrer e de buscar soluções ou respostas junto dos mais próximos e não obtendo ajuda. Nesses casos, os visados vão a um curandeiro, a um animista ou a igrejas evangélicas ou pentecostais, a fim de encontrarem algum alento. Uns encontram-no para sempre, outros, nem por isso, porque ficam com alguma paz, que passado algum tempo é interrompida.

O que se diz desses espíritos é que, quando tratados, passam de um membro da família para o outro ou, em caso de morte do visado, o espírito é enviado por herança para um membro da família que seja da mesma linhagem. Há casos em que os familiares de linha recta da vítima também são afectados pelo sofrimento ou desestabilização deste. É um fenómeno que causa tormento às famílias, porque, para além de algumas ocultarem o conhecimento do facto, outras há que não encontram solução e acabam mesmo por enveredar pela medicina ocidental. Do que se sabe, esta medicina aborda o caso como se de alucinações se tratasse. Mas isso não resolve a questão, passando o visado a viver um dilema constante.

Enfim, é um assunto que advém de crenças e de tradições. E o melhor a fazer é compreendê-lo, porque julgar não leva alguém a lugar nenhum. Provavelmente, a conjugação de esforços entre a medicina tradicional africana, a dos curandeiros, com a medicina ocidental e os psicólogos ajudasse as vítimas deste mal a se libertarem e terem uma vida menos sofrida.

 

Sara Jona Laísse é docente na Universidade Politécnica, em Maputo. Contacto: saralaisse@yahoo.com.br

[related_posts_by_tax format=”thumbnails” image_size=”medium” posts_per_page=”3″ title=”Artigos relacionados” exclude_terms=”49,193,194″]

Pin It on Pinterest

Share This