
Seminário da Guarda: “O autor descreve, por outro lado e com grande rigor, as ambiências de uma “Casa Grande” situada a grande altura e distinguida, favoravelmente, pelos cinco efes (farta, forte, fria, fiel e formosa).” Foto © Agência Ecclesia
O romance No Seminário Maior, de Joaquim Tenreira Martins, antigo aluno desta instituição religiosa da Guarda, abre diversos cenários vividos, por centenas de jovens nos anos 60. Possuidor de várias licenciaturas, especializou-se em Ciências Políticas e Direito. O autor, de 77 anos, natural de Vale de Espinho, no concelho do Sabugal, trabalhou nas áreas sociais e culturais da Embaixada da Bélgica, desde 1972. Escreveu outros livros, tendo como pano de fundo a problemática da emigração portuguesa naquele país. Publicou contos da sua infância e textos poéticos Meu País é a Diáspora, em sonetos, quando a mulher convalescia de uma doença grave.
Tenreira Martins deixa, a dois antigos colegas de seminário, as razões da oportunidade deste livro. Adriano Rodrigues, professor catedrático jubilado, pela Universidade Nova de Lisboa, sublinha: ” Vivia-se, então, um ambiente quase tridentino, numa época em que novos ventos abalavam os pilares da sociedade e da Igreja, em Portugal”. Por sua vez, Albino Lopes, professor catedrático jubilado, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), anotou: “O autor conta, em particular, deixar um testemunho que esse Portugal só já vivia nas mentes das autoridades fossem elas religiosas, políticas, económicas ou policiais que se agarravam a um quase ridículo e arruinado pseudo-estado colonial-fascista, que ruía”.
O narrador avança, quase na abertura do livro, para comportamentos especiais no seminário que, eufemisticamente, eram designados “amizades particulares”, temendo que conduzissem à homossexualidade. A verdade é que o Direito Canónico Romano trata ainda este tema com “anomalia” e “desvio da natureza”. Repare-se que o episcopado alemão acaba de propor que, no próximo sínodo, possam ser ordenados padres, na Igreja Católica, os candidatos gay.
O perigo morava nas mulheres
Por semelhanças que possam existir, a obra de Tenreira Martins não toca na emblemática Manhã Submersa, de Vergílio Ferreira, escrita em 1954 e, mais tarde, rodada, no chão do Fundão, pelo cineasta Lauro António.
A entrada no Seminário Maior era sempre aguardada com ansiedade. Saídos do Seminário Menor e candidatos a “filósofos e teólogos”, aguardava-se, com temor, a primeira monda nos aspirantes ao sacerdócio. Em fins da adolescência, emergiam as áreas naturais da sexualidade, contrariada por um celibato obrigatório. O autor traz, à cena, duas mulheres, a prima Leonor e Matilde, a catequista inventiva, que hão-de pôr à prova a consistência da vocação do narrador, guardada como flor de estufa.
Depois dos maus tratos dados à sexualidade, por uma equipa formadora, tecida de preconceitos, elevava-se entre os alunos o horror à disciplina, regida por cabeças intransigentes, como se o seu valor fosse absoluto e dogmático. Nas vagas alterosas dos anos 60, na surpresa magistral de João XXIII ao anunciar ao mudo a convocação do Concílio Ecuménico Vaticano II, a relatividade da “Casa Grande” ganhava foros de emergência. As figuras, do bispo e do reitor, representantes oficiais do poder eclesiástico, tornaram-se os bodes expiatórios dos candidatos, transformados em activistas rebeldes, a incitarem à constante revolução. Como sobreviver, quando portas e janelas se trancavam às novidades sopradas, agora, por improváveis ventos vindos de Roma?
O altar virou-se do avesso
Não havia outra certeza que a chegada à Guarda do bispo diocesano que, por três meses, participou na primeira parte do Concílio. Pelo seu inopinado comportamento, o narrador traz a lume reflexos da indigente participação do episcopado português, na aula conciliar. Salvo raras excepções, como o bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes e o bispo da Beira, D. Sebastião Soares Resende. A ausência de peritos portugueses no Concílio produziu esse escândalo representado pelo então prelado da Guarda, ao trazer de Roma apenas slides das vistas da cidade eterna.
O autor descreve, por outro lado e com grande rigor, as ambiências de uma “Casa Grande” situada a grande altura e distinguida, favoravelmente, pelos cinco efes (farta, forte, fria, fiel e formosa).
A cor deste tempo veste-se da música que perpassa no éter, de Sylvie Vartan, de Bob Dylan, dos Beatles, de Zeca Afonso, com os seus Vampiros e do Fado da Despedida, de Hermano da Câmara. Organista do seminário, o narrador chama a música que acompanhou a renovação da liturgia católica: Extinguia-se o latim e ganhava-se maior participação das comunidades. O altar virava-se do avesso.
Pensativo, o narrador não esquece a trágica guerra colonial, iniciada em 1961, que consumiu a vida de mais de 13.000 portugueses. Para seu proveito, o serviço militar, por benesse da Concordata, estava ausente da carreira eclesiástica. Qualquer desistência do seminário tinha, como consequência imediata, o cumprimento obrigatório do serviço militar, nas três frentes abertas de combate.
Mas o que manteve sempre em fúria os seminaristas da Guarda foi o abuso de confiança dos superiores que arbitrariamente, invadiam os quartos dos alunos e violavam a correspondência. Estava longe, na instituição, a consciência dos Direitos Humanos, que eram, aqui, torpedeados.
Editora Moraes, o baú proibido
Os ventos fortes de Roma eram projectados pela profusa literatura teológica com autores banidos pela nomenclatura eclesial local: Karl Rahner, Hans Küng, Edward Schillebeeckx, Joseph Ratzinger e Yves Congar, os proscritos, entre outros, da Santa Sé, cujos livros se devoravam nos quartos vigiados.
Alguma menoridade intelectual obrigou a que as portas da “Casa Grande” se franqueassem a custo. Ousadias levaram a que alguns “teólogos”, segundo a narrativa, atingissem a capital à procura de novidades literárias católicas. Estas passavam, invariavelmente, pela editora Moraes, de grata memória, dirigida por Alçada Baptista, um dos católicos intrépidos da linha da frente, no esconde-esconde da polícia política, sustentáculo do regime de Salazar e Caetano.
Tenreira Martins privilegia, nesta sua obra, a movimentação da comunidade, em articulação com os colegas, sempre autores de façanhas positivas e, tantas vezes, audazes.
Quase angustiante é o retrato que o narrador faz de si mesmo, atraiçoado na vocação, que fica pelo caminho, a contas com o celibato. Nem os padres operários o convenceram a não largar a mão do arado. A saída para a emigração foi, certamente, mais valia que todo o património intelectual, angariado em sete anos.
Alma de romancista

O narrador deste livro está, claramente, fadado para a escrita e para atrevimentos poéticos.
Joaquim Tenreira Martins habitante, como eu, de várias “Casas Grandes”, deixa, neste seu romance, a saudade de um percurso antigo, que amou até à exaustão. Não fora a encruzilhada do tempo de variações complexas e Tenreira Martins teria percorrido um espaço de proximidade com a transcendência, imersa nas pessoas e comunidades, que aceitam os valores primordiais do cristianismo. Foi, por isso, até que ganhou, em alta dedicação, a diáspora que, sempre, marcou o destino colectivo do povo português e onde tem três filhas.
Percorrendo as suas obras, este autor fecundo, oferece-nos títulos de experiência feitos, em escrita profunda e paciente, como No Seminário Maior. Não se cobrirá jamais de silêncio, quem decidiu pôr, em lugar altaneiro, o brilho bruxuleante da candeia.
A oportunidade da edição deste livro vem a talhe de foice, quando Roma envia comissários pontifícios aos seminários de Espanha e, em Braga, se realizou de 16 a 19 de Novembro, um Congresso Internacional, na comemoração dos 450 anos do fundação do seminário conciliar de Braga na sequência do Concílio de Trento, iniciado em 1545, que institucionalizou os seminários, que agora quase se extinguem.
No Seminário Maior, de Joaquim Tenreira Martins.
Editora Ego, 2022, 218 pág., 15,20 €
Manuel Vilas Boas é padre e jornalista.