
“As conclusões do relatório trouxeram-me à memória muitas das questões que têm sido levantadas no percurso sinodal, desde logo a necessidade de se repensar a estrutura de poder na Igreja – tem mesmo de ser assim, se nem sempre foi assim?” Foto © Marta Saraiva
Passou um mês. A leitura do relatório da Comissão Independente [para o Estudo dos Abusos Sexuais sobre Crianças na Igreja em Portugal] prossegue lenta, com a calma, a atenção e o espírito crítico que merece, e o mais em diferido possível do quente das primeiras impressões.
Do que já li, das muitas e boas conversas que foram surgindo nestas semanas, e ainda dos ecos do relatório francês publicado em outubro de 2021, vão-se desenhando ou confirmando algumas intuições. Nenhuma é nova, nenhuma é original e a maioria será partilhada por muitos de nós.
A investigação sobre os abusos sexuais de crianças devia ser apenas o início de um trabalho profundo e exaustivo sobre o fenómeno na sua totalidade: é urgente uma cartografia dos abusos, por muito dura que ela seja. Sobre o abuso de menores sabemos agora bastante; sobre o abuso sexual, psicológico e emocional de adultos e, principalmente, sobre o abuso espiritual de religiosos e de leigos não sabemos nada. Podem não envolver crianças, mas os danos estão cá e, se quisermos ser sérios e adultos, temos de ter a coragem de nos confrontar com esta realidade. Espero que o queiramos e consigamos ser.
As conclusões do relatório trouxeram-me à memória muitas das questões que têm sido levantadas no percurso sinodal, desde logo a necessidade de se repensar a estrutura de poder na Igreja – tem mesmo de ser assim, se nem sempre foi assim? –, a de os leigos reivindicarem e assumirem em pleno o lugar que lhes foi confiado pelo Concílio Vaticano II, e a de recuperar e resgatar o papel das mulheres na Igreja. A pergunta não tem resposta, mas não perde a pertinência: as conclusões teriam sido as mesmas se a Igreja se estruturasse de outra forma, se os leigos tivessem um papel mais autónomo e ocupassem lugares de decisão e a voz das mulheres tivesse outro peso?
Não por acaso, algumas reacções revelaram muitas das fragilidades da estrutura institucional da Igreja portuguesa. Sem duvidar por um instante das boas intenções dos bispos (assumir a boa-fé de terceiros é uma posição de princípio) foi impossível assistir a algumas das entrevistas e comunicações sem me perguntar se os nossos bispos e muitos dos sacerdotes conhecem verdadeiramente, “por dentro”, o país e o tempo em que vivem, e se se conseguem comunicar a esse país, e a esse tempo. Não para que a Igreja se adapte e se funde acriticamente no morno do pós-moderno e no deserto da pós-verdade, mas porque “estar no Mundo sem ser do mundo” é uma condição essencial para anunciar verdadeiramente o Evangelho. É um desafio enorme, assusta, mas é a realidade, seja em que época for.
Para além destas impressões mais pragmáticas, foi surgindo uma intuição mais de fundo. Da leitura dos testemunhos, das caracterizações apresentadas no relatório, de variadíssimas reacções (insisto nesta palavra, as respostas só virão após o choque) no seio da Igreja e não só, vou tomando consciência de uma outra ferida. Não tão profunda, nem tão escandalosa como a dos abusos, mas talvez mais instalada: a pobreza das nossas relações. De todas elas, as comunitárias, sociais, familiares, interpessoais, eclesiais… e da relação connosco próprios também. É de uma desolação atroz.
O contexto eclesial não explica tudo; longe disso. A relação dos portugueses com a autoridade roça a disfuncionalidade de tão infantil que é, e muitos dos testemunhos ecoam contextos de uma pobreza material enorme. Ainda assim, é legítimo perguntar quão superficiais, quão transaccionais ou circunstanciais, quão racionalizados serão os laços que estabelecemos nas nossas paróquias e nas nossas comunidades para que não tenha havido a confiança (e a maturidade) para se ter falado deste tema mais cedo, e para terem sido denunciados mais casos, para ficarmos anos a negar o óbvio: se aconteceu em tantos outros países, aqui também terá acontecido. Podemos contrapor todas as racionalizações que encontrarmos, que a pergunta permanece.
Há todo um trabalho de reparação a fazer, necessário, mas não suficiente. A única resposta possível a tanto sofrimento causado é uma mudança de fundo. E qualquer mudança de fundo começa obrigatoriamente com olhar a realidade de frente. O que levanta uma última hipótese: talvez a Igreja instituição não consiga ler o seu mundo e o seu tempo, porque talvez não se conheça, nem a si nem aos seus, nem aceite o que de facto é, em todo o seu esplendor e em toda a sua miséria.
Não será já, mas chegará, assim o espero, o momento de nos olharmos ao espelho – Igreja instituição e Igreja Povo de Deus – e dizermos com toda a verdade: isto somos nós. Podemos não gostar, mas é isto que somos.
E, a partir daí, é levar connosco as palavras de Daniel Faria:
“Caminha para dentro
onde gira a nora e o burro é cego
E os círculos perfeitos.
Não te há de faltar
A distância.”
Marta Saraiva é diplomata, exercendo atualmente funções na Missão de Portugal junto do Conselho da Europa.