Nos Passos de Etty Hillesum (pré-publicação e conferência internacional)

| 18 Mai 19

Fotos de Filipe Condado

(clicar sobre as imagens para ver a foto aumentada e a legenda)

 

O efeito colateral de Etty Hillesum

Um dia, conta o fotógrafo Filipe Condado, ele percebeu o que lhe acontecera: “Não tinha ido como verdadeiro peregrino, como quem tem a coragem de partir de bolsos vazios, com o desejo ardente de acolher o que possa acontecer; como quem se dispõe a estar vigilante para não deixar que a subtileza de Deus lhe passe ao lado; como quem lhe basta o desejo de encontro para arriscar partir.”

Sentiu-se então “chamado a voltar, desta vez como peregrino, sem medo da possibilidade de regressar de mão vazias”, à procura dos passos de Etty Hillesum, a judia de Amesterdão que foi assassinada pelos nazis no campo de extermínio de Auschwitz quando tinha 29 anos. Foi quando percebeu o “efeito colateral” que Etty tinha provocado, através da sua vida e da sua experiência, registada no Diário e num volume de Cartas que são já considerados obras essenciais da mística religiosa contemporânea, de referência judaico-cristã.

O resultado da peregrinação de Condado é o livro Nos Passos de Etty Hillesum, que será apresentado neste sábado, 18 de Maio, na Capela do Rato, em Lisboa, a partir das 18h. O livro inclui, além das fotos, um ensaio de apresentação escrito por José Tolentino Mendonça, actual arcebispo e prefeito da Biblioteca Apostólica Vaticana que, na qualidade de responsável da Capela do Rato, orientou uma viagem pelos lugares de Etty, em 2017.

A apresentação de Nos Passos de Etty Hillesum (ed. Documenta) é a primeira etapa da conferência internacional sobre Etty Hillesum, que decorre na próxima segunda-feira, dia 20, entre as 9h e as 19h, na sala B2 da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (a entrada é livre).

Na conferência, participam vários especialistas portugueses e holandeses na obra daquela que José Tolentino Mendonça considera a protagonista de “uma das aventuras espirituais mais intensas do século XX”.

Em pré-publicação, o 7 MARGENS reproduz a seguir excertos do texto de José Tolentino Mendonça e do “Testemunho” de Filipe Condado, bem como algumas das fotos do livro e respectivas “legendas”, retiradas dos textos de Etty.

 

Testemunho

por Filipe Condado

(…) Em Amesterdão hospedei-me perto da casa da Etty, pois queria fazer daí o meu ponto de partida.

No primeiro dia, noite adentro, percorri inúmeras vezes o cami- nho entre a sua casa e a casa de Julius Spier («o parteiro da sua alma»). Esperava com isso encontrar inspiração, mas nada acontecia. Ao frio e debaixo de chuva, senti-me como um mendigo perdido pelas ruas de Amesterdão. Numa das voltas, sentei-me naquelas escadas do n.º 27 da Courbetstraat, onde Etty também se terá sentado a absorver os progressos que o seu coração ia fazendo. Mas nem aí me saía nada. Senti que era tudo demais para mim.

Voltei ao caminho e, a dada altura, percebi que a chuva intensa me conduzia o olhar para o chão, impedindo-me de ver o que se passava à minha volta.

Levantei a cabeça como quem deixa de olhar para dentro e comecei a fixar-me no interior das casas. O escuro da rua e o enquadramento das próprias janelas criavam a ilusão de estar no cinema a ver filmes de vidas reais: amigos à volta de uma mesa; casais aconchegados no sofá; crianças de pantufas aos saltos na cama. Cenas familiares de um quotidiano feliz e tranquilo.

Quando cheguei de novo a casa da Etty, também olhei para dentro, mas estava tudo apagado.

Então, senti que tinha diante de mim o seu legado.

A sua entrega de vida e a sua dádiva de amor estavam agora espalhadas pela paz que testemunhei no interior das outras casas, como se de um efeito colateral se tratasse. Tão discreto, tão simples; aparentemente tão insignificante, mas tão nobre e grandioso!

Voltei a Westerbork, e aí percebi que foi também por ela que aquele campo, outrora lamacento e lugar de um enorme sofrimento, se tinha podido transformar num belo, sereno e até leve jardim verdejante.

Ela, como ninguém, mostrou-me o que é guardar e defender até às últimas consequências o lugar que Deus habita em nós.

Ela, como ninguém, ensinou-me a importância de exercitar a gratidão.

Ela, como ninguém, mostrou-me que é o facto de esperarmos um destino comum que nos faz cúmplices e irmãos na aventura do caminho.

Foto © Filipe Condado

 

Exercícios Espirituais

por
José Tolentino Mendonça

(…)

Uma vida em contraciclo 

Não raro, reduzimos a espiritualidade ao estatuto de grafia tipicamente religiosa, desligada do resto. Para Etty, a espiritualidade foi uma experiência unificante e inteira, em que a descoberta de Deus ou das práticas orantes eram indissociáveis do ardente encontro consigo mesma. Isso podemos verificar tanto no desenho da sua biografia, como nas atitudes fundamentais que foram germinando nela e constituíram, depois, a sua expressão religiosa, ética e poética. Cada vida é uma história sagrada. O que nos é pedido não é o rastreio moral daquela existência, mas um reconhecimento. E aceitando a vida de Etty Hillesum, talvez aprendamos alguma coisa sobre a arte de aceitar a nossa própria vida. (…)

Até aos 18 anos Etty viveu com a família, e o vírus da infelicidade contaminou toda a sua infância e adolescência, como um mal que parecia perpétuo. Aos 18 anos, com o pretexto dos estudos, parte para Amesterdão. Embora tivesse concluído a licenciatura em Direito, interessa-se muito pelas línguas, nomeadamente pelo russo; torna-se uma leitora omnívora; dispersa-se em paixões de diversa ordem; revela-se um catalisador entre os seus amigos. Mas quando se vê a si mesma sente-se a falhar aquele que é o seu mais áspero e perseguido sonho: vir a ser escritora. Em 1937, com 23 anos, ela vive perto do grande Museu do Reino (Rijksmuseum), na Rua Gabriel Metsü, na casa onde é governanta e que pertence a Hendrik Johannes Wegerif (tratado, entre os amigos, por Han), um viúvo de 58 anos, de quem se torna também amante. Em todo este tempo de Amesterdão, a dimensão erótica e sexual acaba por ser para ela a principal expressão de si. Etty passa por uma série de encontros e de desencontros, com um custo de sofrimento grande, nomeadamente quando recorre à interrupção da gravidez. (…)

Em Maio de 1940, os nazis invadem também a Holanda, e começa a perseguição metódica aos judeus. As autoridades alemãs concretizavam-na de uma forma crudelíssima: não eram eles que escolhiam os que iam para o Campo de Concentração; eram judeus que, através do Conselho Judaico, mediavam a ida dos outros judeus, o que tornava tudo ainda mais perverso. Etty chegou a trabalhar por breve tempo no Conselho Judaico em Amesterdão, na secção «Ajuda aos que partem», desempenhando tarefas burocráticas. Depressa se apercebeu do que estava, na verdade, a acontecer e solicitou voluntariamente transferência para a extensão do Conselho Judaico em Westerbork, departamento de «Bem-estar social das pessoas em trânsito». Primeiramente ela ainda ia e vinha entre esse Campo de Trânsito (que funcionava como uma estação intermédia antes de Auschwitz) e Amesterdão, até por motivos de saúde (ela dizia que tomava um quilo de aspirinas por mês). Aos poucos, porém, acaba por ficar no Campo, e, a partir da dissolução da secção do Conselho Judaico em Westerbork, será declarada prisioneira efectiva, dada a extinção das prerrogativas anteriormente reservadas aos colaboradores desta instituição. Em Westerbork ela escreve o seu Diário, mantém uma correspondência e, sobretudo, está ao lado dos que sofrem. Naquele mundo completamente inesperado, naquele lugar que diríamos o «antilugar do espírito», ela vive uma das aventuras espirituais mais intensas do século XX. Um dia é metida num dos vagões com destino a Auschwitz. A última carta que temos de Etty Hillesum é um postal que ela consegue lançar para fora da carruagem, onde diz: «Deixámos o Campo a cantar». Ela chegou a Auschwitz no dia 10 de Setembro de 1943 e a sua morte foi anunciada pela Cruz Vermelha a 30 de Novembro do mesmo ano. (…)

Foto © Filipe Condado

 
A alma precisa de um parto 

(…) Quando ela inicia o trabalho espiritual (e fá-lo, na primeira etapa, com a ajuda de Julius Spier) reconhecerá que estava bloqueada e que precisava de «um parteiro» para a sua alma. Mas ao dizer que precisava de um parteiro, Etty reconhece sobretudo que a alma precisa de um parto. Nem a sua, nem a nossa é de geração espontânea. Como é que se dá esse parto? Desta forma: aquilo que a bloqueava teria de ser identificado e abraçado, teria de ser objecto de uma reconciliação, teria de ser assumido como a geografia mais oportuna para o seu reflorescimento. Deus poderia entrar na sua vida pela única porta que ela consentia nessa época: o erotismo. Essa é talvez a primeira lição de Etty, como mestra espiritual. O divino frequentemente chega à nossa vida através do humano demasiado humano que experimentámos, isto é, através do eixo mais vulnerável de nós próprios. Nesta estação da vida dela tudo passava pelo erótico e pelo sexual. As coisas verdadeiramente significativas para ela encontravam expressão por aí. Não conhecia outros canais, não havia explorado outros percursos, tudo lhe chegava através dessa mediação. Por isso, não é estranho o envolvimento com Han ou com Spier. Mas progressivamente vai penetrando num outro estádio de consciência, mesmo se a palavra caos seja uma das mais repetidas no Diário. (…)

Ensaiar o recomeço 

O primeiro momento de transformação acontece quando Etty Hillesum se torna capaz de falar do ódio a si mesma que ela transporta. O problema de Etty –  frequentemente tão semelhante ao nosso – é que ela interiorizou todo este abandono, esta desordem, este caos, e odiava-se por isso. «Odeio-me como se fosse um veneno», diz ela a dada altura, no Diário. No processo terapêutico vai ter oportunidade de falar disso e de exprimi-lo: rebelando-se, chorando, lutando com a sombra de si mesma; e, ao mesmo tempo, percebendo que a vida pode ser outra coisa. (…)

A descoberta de que podemos partir da nossa realidade para um trabalho de reconciliação, foi o primeiro momento de libertação na sua vida. Aos poucos, e graças à relação com Spier, ela foi identificando este processo como uma aproximação a Deus: «Estas forças à minha disposição foste tu que as libertaste. Ensinaste-me a pronunciar o nome de Deus sem reservas. Foste o intermediário entre Deus e mim e agora tu, o intermediário, partiste e o meu caminho conduz em linha recta a Deus»… 

 

Passar da cabeça ao coração 

Um dos aspectos que chamam a atenção em Etty Hillesum é que ela não tem qualquer formação religiosa. O contacto com o religioso chega-lhe através do psicoterapeuta, que lhe fala de oração; vem de alguns amigos que a vão iniciando nesse caminho; vem da leitura pessoal da Bíblia e do trabalho do Espírito nela. Uma das primeiras coisas que Spier lhe diz é: «há uma grande coisa a fazer: é passares daqui (cabeça) para aqui (coração).» (…)

Porque esse é o passo e o início da espiritualidade verdadeira: experimentar Deus na nudez, na pobreza, na dificuldade da vida; sentir que Deus me contempla com amor, que ele me visita como o oleiro visita o barro, e vai modelando e remodelando o que sou… E, com que dedicação, Deus está disposto a trabalhar a nossa vida… Como aquela rapariga de Amesterdão temos apenas de ousar dizer: «Ó Deus, toma-me na tua grande mão e torna-me o teu instrumento.» (…) 

 

Agradecer o que somos 

(…) O início da abordagem contemplativa é a confiança e o abandono. O ponto de partida de Etty Hillesum era tão difícil… mas os pontos de partida não nos podem condicionar para sempre. Ela não escolheu aquele pai ou aquela mãe, não escolheu o lugar onde nasceu – e nenhum de nós escolheu isso! O ponto de partida é o que é, é o que pôde ser! Não há miséria que nos impeça de viver uma aventura espiritual: «Dentro de mim há um poço muito fundo. E lá dentro está Deus. Às vezes consigo lá chegar. Mas acontece mais frequentemente haver pedras e cascalho no poço, e aí Deus está soterrado. Então é preciso desenterrá-lo.» 

Etty não é só a rapariga que não se conseguia ajoelhar. Ela não sabia igualmente escutar, não sabia ser… Essas são as nossas patologias e precisamos de um tempo de aprendizagem. O primeiro apelo da «Regra de S. Bento», uma das tradições monásticas mais importantes do cristianismo ocidental, começa assim: «Meu filho, abre o ouvido do teu coração.» Esse é o princípio do nosso florescimento. «Abre o ouvido do teu coração»: aprende a passividade, aprende a viajar na tua alma… Quando Etty se coloca nesta atitude, começa a rezar assim: «Meu Deus, agradeço-te por me teres criado como eu sou.» Enquanto não repetirmos esta oração, com o máximo de verdade de que formos capazes, também não teremos paz. É assim que nos avizinhamos daquela «única certeza» que se tornou o ponto de conversão na vida de Etty Hillesum: «A única certeza em como viver e o que fazer, só pode provir das fontes que brotam lá no fundo de ti. E agora eu digo muito humilde e grata, e é a sério, embora eu saiba que mais uma vez me hei-de rebelar e tornar-me irritável: “Meu Deus, agradeço-te por me teres criado como eu sou. Agradeço-te por às vezes poder estar cheia de vastidão, essa vastidão não é senão o estar repleta de ti. Prometo-te que toda a minha vida há-de ser uma luta para atingir a bela harmonia e também humildade e amor verdadeiro de que me sinto ser capaz nos meus melhores momentos.”» 

[related_posts_by_tax format=”thumbnails” image_size=”medium” posts_per_page=”3″ title=”Artigos relacionados” exclude_terms=”49,193,194″]

Pin It on Pinterest

Share This