
O medo da deriva na Igreja Católica “é evidente e diz respeito a todos”. Foto © Xosema, via Wikimedia Commons.
Opus Dei, Focolares, Legionários de Cristo, Comunhão e Libertação, carismáticos, neocatecumenais e muitos outros dão corpo aos chamados novos movimentos religiosos e possuem, todos eles algo em comum: de promessa de futuro da Igreja converteram-se em exemplos de alguns dos maiores problemas que a Igreja tem tido – idolatria, abuso de poder, escândalos sexuais. Que é possível e necessário fazer?
Colocando o problema em perspetiva e no seu contexto, refira-se que, no Pentecostes de 1998, o Papa João Paulo II convocou esses movimentos para a Praça de S. Pedro e chamou-lhes “expressões providenciais da nova primavera suscitada pelo Espírito com o Concílio Vaticano II”. Nessa altura, em muitos deles, já se viviam situações escandalosas de abusos.
Num retrato em que sublinha algumas facetas mais escuras, o vaticanista Sandro Magister considera que, “hoje, à primavera seguiu-se uma estação sombria e tempestuosa”. “Ao triunfo, o desastre. Colapsos numéricos, derrocadas, escândalos intoleráveis, fundadores tão idolatrados como depois revelados como abusadores no espírito e no corpo dos seus seguidores, inúmeras vítimas traídas na sua confiança”, refere o jornalista e colunista do jornal italiano L’Espresso.
Desafios e perigos identificados já em 2004
Magister recorda-nos que “não faltaram sinais de alarme”, logo no início deste século. Em junho de 2004, a revista La Civiltà Cattolica, cujo conteúdo é da responsabilidade dos Jesuítas, mas com concordância do Vaticano, chamava a atenção, em editorial, para os “desafios e os perigos” ligados a estes movimentos.
Entre os desafios, a revista apontava, já há quase duas décadas: a) o vazio legislativo, decorrente do facto de o Código de Direito Canónico não tratar destes movimentos, com exceção do Opus Dei, desde que se tornou prelatura pessoal; b) dupla pertença de religiosos e religiosas de congregações antigas que passam a pautar-se pelos objetivos de neo-catecumenais ou carismáticos, por exemplo; c) inclusão de não católicos, o que poderia levar a normas estatutárias problemáticas, caso eles se tornassem maioritários; d) os padres ‘arrancados’ às dioceses para servir estes movimentos e os seminários ‘paralelos’ que alguns constituíram, (ex.: Redemptoris Mater, do Caminho Neocatecumenal), formalmente incardinados em dioceses ‘amigas’, mas de facto não exercendo nelas o seu ministério.
Os perigos identificados nesse editorial de La Civiltà Cattolica eram três: a) “tendência para absolutizar a própria experiência cristã, considerando-a a única válida, para que os ‘verdadeiros’ cristãos sejam aqueles que fazem parte desse movimento”; b) “tendência para se fechar em si mesmo” quanto a planos pastorais e métodos de formação dos membros do movimento, com a recusa de colaborar com outras organizações eclesiais; c) “tendência para se distanciar da Igreja local”, virando costas às diretrizes e programas pastorais das dioceses e paróquias e gerando, por essa via, “tensões por vezes duras entre os movimentos eclesiais de um lado e os bispos e párocos do outro”.
Referindo-se especificamente à Igreja Católica em Itália, Sandro Magister conclui:
“A catástrofe seguiu o seu curso e hoje quase todas as análises publicadas sobre o assunto concordam em imputar até aos pastores da Igreja uma responsabilidade no que aconteceu, pelos seus silêncios e preguiça”.
Critérios para combater e prevenir derivas e abusos
O que fazer para assumir este desafio?
O vaticanista remete para um artigo do teólogo e bispo de Novara, Franco Giulio Brambilla, publicado recentemente na revista italiana Il Regno, (acesso mediante assinatura) intitulado “Novos movimentos religiosos: os riscos de uma deriva sectária”. Este antigo professor de Antropologia Teológica em Milão, por sua vez, vai beber as suas propostas em trabalhos recentes publicados sobre o assunto em Itália e França, traduzindo-as em “critérios a utilizar para uma avaliação crítica dos novos movimentos religiosos e dos seus líderes”.
“A relação entre carisma e instituição” é o primeiro desses critérios e diz respeito às lideranças desses novos movimentos. Sobre este ponto, o bispo Brambilla considera ter sido um erro “colocar o elemento carismático a crédito apenas dos movimentos e o elemento institucional apenas associado às formas tradicionais de comunidade”, com o resultado de favorecer a rápida transformação dos movimentos “em experiências totalizantes da Igreja, com traços evidentes de uma ‘Igreja paralela'”. Alerta ainda para o risco de quem está à frente do movimento, levado pela força do argumento dos ‘bons frutos’, criar à sua volta uma aura de sedução, meio passo para um “líder sedutor”, particularmente quando ele tem “um ego hipertrófico”, narcisista, “mas apresenta um eu muito frágil”.
Neste âmbito, a recente decisão do Papa de limitar a duração dos mandatos e de estabelecer a distinção rigorosa entre fórum interno e externo são remédios cujos frutos se aguardam. Mas, a estes dois remédios, o autor propõe juntar um terceiro que é exigir a aprovação eclesiástica dos estatutos logo na altura da fundação, prestando especial cuidado à distribuição de poderes e competências, bem como aos processos de decisão.
O segundo critério de verificação diz respeito ao modo de falar, de vestir, de cantar, de atuar e, sobretudo às modalidades de práticas devocionais e litúrgicas, em que pode haver de tudo: orações carismáticas, ritos esotéricos, práticas de cura, vigílias guiadas pelo guru, posturas corporais bizarras… ou seja, “práticas devocionais e … ritos sacramentais, cada vez mais privatizados e manipuláveis”. A questão fulcral para o teólogo e bispo de Novara é a Eucaristia dominical. “Se a missa festiva, pergunta ele, é sistematicamente celebrada e vivida apenas com o próprio grupo ou movimento, como se pode pensar, a longo prazo, que ainda se pertence à Igreja Católica?”
Relativamente ao terceiro critério, Brambilla coloca o foco na metodologia e processos de recrutamento de novos membros, desde a primeira abordagem, passando pelo convite para um evento especial altamente gratificante para o candidato, até chegar ao estabelecimento de um laço duradouro. Atenção especial é dada aos mecanismos usados para a escolha ou a exclusão, particularmente nos casos em que alguém coloca interrogações ou exprime dúvidas, os quais podem ir até à desqualificação moral ou ao banimento da comunidade.
A perspetiva doutrinal de cada movimento é o assunto do quarto critério que o bispo Brambilla diz ser de difícil apreensão visto que, muitas vezes, o líder “se esconde atrás de uma verdade supostamente superior e inacessível, com traços esotéricos”, “um estádio espiritual mais avançado” que lhe cabe “guardar, com uma espécie de disciplina dos arcanos”, e que pode servir para justificar comportamentos sexuais anómalos e estilos de vida luxuosos.
O último critério de julgamento, que o bispo considera o mais volátil, refere-se à proposta moral de cada movimento, que diz respeito à moralidade pessoal e ao empenhamento social. Escreve Brambilla:
“Se o pano de fundo é o apocalítico, que interpreta o tempo presente como uma crise do sistema, temo que a orientação moral possa cair em formas idealizadoras, ora alternativas ou escatológicas, ora combativas ou encarnacionistas, com todas as nuances intermédias, sem experimentar a realidade e o limite que podemos e devemos partilhar com os homens de hoje”. Isto porque “encarnação e transcendência são dois polos entre os quais não se deve [ter de] escolher, mas com os quais se pode viver uma ética da partilha e do testemunho, sem nunca os separar”.
“Este texto, alerta o bispo Brambilla na conclusão do artigo, pode parecer amargo e dramático, mas não é nada – há que reconhecê-lo – em comparação com as derivas e os abusos espirituais que, nestes últimos anos, puseram em perigo a nossa fé e a confiança de muitos”. “Escrevi estas notas, acrescenta ele, não tanto para denunciar a deriva sectária de grupos e movimentos. Isto aplica-se também a qualquer outra configuração agregadora, incluindo associações, paróquias e oratórios. O medo da deriva é evidente e diz respeito a todos, mas fi-lo para o reconhecer e o prevenir”.