O 25 de abril: rito (religioso) ou ritualismo (político)?
A Páscoa celebra uma liberdade muito maior, aquela que rasga as amarras da morte, e não deixou de ser celebrada em cada casa; os aniversários, celebração do grande Dom que é raiz de todos os direitos fundamentais, não deixaram de ser celebrados, ainda que à distância de um adeus por uma janela; a morte, momento humanamente trágico, vivido em muitos casos de forma (ainda mais) solitária e distante, não deixou de ter um padre e alguns familiares mais próximos a celebrar essa partida, muitas vezes não vista e não acreditada.
Um rito é um conjunto de gestos e palavras, que fazem parte da cultura e dos costumes de um povo ou de uma cultura e que se dispõem de forma organizada e ritmada para manifestar aquilo que se sente ou aquilo que se celebra, dando assim um significado comum. Ao conjunto dessas práticas comuns, simbólicas, celebrativas e repetidas, que expressam o que vai no interior e no coração de quem os pratica, chamamos ritual. Ritualismo, porém, pode ser entendido como o apego exterior às regras do ritual, às práticas e aos modos de o fazer. Pode ser expressão disso o termo mais “cerimonial”, que tende mais à forma que ao conteúdo celebrado.
A sociedade – e as confissões cristãs de um modo particular em tempo de Páscoa – foram sabendo recriar novas formas que permitissem a celebração do conteúdo fundamental da fé em tempos de estado de emergência, recriando não só a forma de transmitir esse conteúdo, como de valorizar os aspetos simbólicos próprios deste tempo, tornando cada casa um verdadeiro templo e a família o novo espaço ritual onde a vida e a fé acontecem. A verdadeira liberdade tem sido descobrir que um confinamento não é necessariamente uma prisão e que, apesar de todo o constrangimento, somos chamados a fazer um esforço – também ele mais que simbólico – que fechados em casa não somos privados da liberdade nem de manter, individual e comunitariamente, a celebração fundamental da vida e da fé.
Viver numa espécie de “ritualismo político” é achar que o 25 de abril é monopólio de alguns (contra a participação de todos), que a sua celebração só pode ser feita naquele espaço concreto de Parlamento (porque o cerimonial é mais importante que a celebração) e que o confinamento à casa de cada um perde a sua dimensão simbólica porque há uma casa que se apresenta como mais fundamental que é a Casa da Democracia.
Serão poucos aqueles que não se identificam como o 25 de abril, o seu significado e a conquista democrática que este representa. Ser-se contra a modalidade optada para este ano não é ser contra a grande conquista e o alcance de toda a sua celebração, mas é sentir que a ideologia e o cerimonial matam o esforço que toda a sociedade vem fazendo nas diversas esferas das suas vidas e das suas crenças. Talvez houvesse uma qualquer outra forma de celebrar o 25 de abril, de fazer que ele fosse simbólico e participado, vivido também a partir de cada casa, com riqueza e prazer pelas liberdades alcançadas. Talvez ficar preso à exterioridade dos símbolos seja uma forma ritualista de confinamento simbólico onde a Casa que deveria ser da Democracia e que já fora também de Fé e da Espiritualidade, se transforme num gueto de alguns que, legitimados democraticamente, se parecem comportar de forma despótica e aprisionados a causas políticas e ideológicas e não à riqueza dos valores humanos em questão: o direito à vida e à liberdade. A Democracia não fechou, como a Escola não fechou, a Religião não fechou… tudo se recria e reinventa em tempo de crise. Da nossa Casa de Todos espera-se um pouco mais para que o presente nos aproxime e não nos divida…e o futuro não nos traia.
João Alves é padre católico da diocese de Aveiro e pároco da paróquia da Vera-Cruz
[related_posts_by_tax format=”thumbnails” image_size=”medium” posts_per_page=”3″ title=”Artigos relacionados” exclude_terms=”49,193,194″]