O ano aceitável do Senhor

| 13 Jan 2023

Cristo e o Jovem Rico, de Johann Michael Ferdinand Heinrich Hofmann

Johann Michael Ferdinand Heinrich Hofmann, Cristo e o Jovem Rico (1889): Jesus estava ciente das estruturas sociais do seu tempo, que oprimiam os mais marginalizados.

 

De todas as festividades relacionadas com o início do ano civil que os judeus celebravam, uma das mais importantes era sem dúvida o Yom Kipur, o do quinquagésimo ano, ou seja, o Ano do Jubileu (Levítico 25:8-55). A cada sete anos em toda a nação, ao som da trombeta (ou shofar), deveria ser celebrado um ano sabático. Nesse ano, a terra deveria ficar em pousio, isto é, sem ser cultivada (Levítico 25:1-7, Deuteronómio 15:1-4) e perdoadas todas as dívidas aos pobres que tivessem ocorrido nos seis anos anteriores, lembrando assim a libertação do povo de Israel do cativeiro do Egito. Mas, ao fim de cinquenta anos, ou seja, após sete anos sabáticos, seria então celebrado o Ano do Jubileu. Os escravos deveriam ser libertados e voltar para as suas famílias. As propriedades que, por razões económicas tivessem sido vendidas, teriam de ser devolvidas aos seus antigos proprietários e todas as dívidas perdoadas. A própria Lei de Moisés estipulava que todo o trabalho agrícola deveria cessar e o solo ficar em pousio. Milhares de camponeses e aldeões, cuja vida estava ligada aos ciclos das estações agrícolas, estariam livres total ou parcialmente dos seus trabalhos, aguardando ansiosamente a amnistia de todas as suas dívidas e fardos.

Tenha ou não o ano de 26-27 d.C. sido um ano sabático, como defendem alguns estudiosos, pensa-se que terá sido nessa altura que Jesus tenha dado início ao seu ministério, conforme o relato que encontramos no Evangelho de São Lucas 4:16-22.

E veio para Nazaré, onde tinha sido criado. Segundo o seu costume, entrou em dia de sábado na sinagoga e levantou-se para ler. E foi-lhe dado o livro do profeta Isaías e, desenrolando-o, encontrou a passagem em que fora escrito:
O espírito do Senhor [está] sobre mim, porque me ungiu para anunciar a boa-nova aos mendigos; enviou-me a proclamar aos presos a libertação e aos cegos a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano aceitável da parte do Senhor.
E enrolando o livro e dando-o ao responsável, sentou-se. Os olhos de todos os que estavam na sinagoga estavam fixos nele. Começou a dizer-lhes: “Hoje ficou cumprida essa passagem da Escritura nos vossos ouvidos”. Todos davam testemunho em seu favor e se admiravam com as palavras repletas de graça que saíam da sua boca e diziam: “Este não é filho de José?”

Como se acabou de ler, Jesus pega no rolo do profeta Isaías, lê parcialmente a passagem que está no capítulo 61, versículos 1 e 2, devolve o rolo ao assistente do culto e, perante a estupefação de todos os presentes, declara que a escritura se havia cumprido. Ao que parece, aquilo que Jesus entendia como sendo a sua missão ou manifesto, seria nada menos do que o anúncio do εὐαγγέλιον (evangelho), da boa nova aos pobres: a proclamação da libertação dos cativos, a restauração da vista aos cegos, colocar em liberdade os oprimidos e proclamar o ano aceitável do Senhor, ou seja, o Ano do Jubileu. De facto, desde que Moisés instituíra esta lei, os judeus nunca haviam conseguido pôr em prática todos os preceitos que Deus ali estipulara. Uma coisa era o que estava escrito acerca da lei, outra coisa seria colocá-la em prática, principalmente a proprietários que tivessem escravos, enormes quantias por cobrar e terras ou propriedades adquiridas a terceiros por motivos de endividamento.

Uma primeira leitura do texto de Lucas deixa desde já bem patente aquilo que Jesus pensava acerca do que seria o seu ministério, a sua agenda que, além de apontar para uma redenção espiritual, pressupunha já uma missiologia fortemente carregada de justiça social. As injustiças sociais de então, que geravam a exclusão e opressão, sobretudo sobre os mais vulneráveis e desprotegidos, eram frutos de uma sociedade que privilegiava umas poucas elites político-religiosas que dominavam a esmagadora maioria da população. Estes últimos, essencialmente provenientes do meio rural e cujo atestado de prosperidade era unicamente a sua terra, rapidamente a perdiam para os grandes latifundiários e poder político.

Jesus estava assim bem ciente dos problemas dessa sociedade onde vivia e das estruturas sociais que oprimiam violentamente os seus conterrâneos, especialmente esses marginalizados, os pobres, os prisioneiros de guerra, os fracos de saúde, os presos políticos, os escravos, os endividados, os órfãos e as viúvas. Não há dúvida alguma de que ele pretendia transformar essas estruturas económicas opressivas e subversivas, virando-as de cabeça para baixo, instituindo assim como que um perpétuo ano do Jubileu. Afinal de contas, o evangelho haveria de ter igualmente uma componente eminentemente prática, social e política.

Ao longo dos séculos, a Igreja [cristã] tem conseguido, de uma maneira ou outra, levar a cabo essa importantíssima tarefa que é a de ser agente transformadora da sociedade na qual está inserida. Mesmo em muitas das nossas sociedades modernas e secularizadas, ainda persistem assimetrias sociais gritantes. Importaria recuperar cada vez mais essa voz profética da Igreja que, além de denunciar as injustiças sociais, também proporcione esperança, libertação e cura para muitos dos males que nos assolam nos dias de hoje. Nunca será então demais lembrar que a todos os cristãos – ou seja, conforme o original grego, os pequenos cristos – é dado com responsabilidade o mesmo manifesto do Senhor da Igreja, ou seja, o da proclamação sempre constante do Seu ano aceitável. Que este ano seja, assim, o ano aceitável do Senhor para todos nós.

 

Vítor Rafael é investigador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo, da Universidade Lusófona.

 

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