O barulho não faz bem

| 11 Nov 19

Nos últimos tempos, por razões diversas, algumas conversas têm-se dirigido maioritariamente para o facto de se habitar na cidade, suas comodidades e seus incómodos.

Estes temas são vastos e permitem percorrer muitos caminhos, mas não ficam dúvidas de que, para que a vida tenha sentido, é preciso re-significar a existência; percebê-la como uma oportunidade de aperfeiçoamento e de evolução; vivê-la como um tempo do tempo maior, da melhor forma que cada um possa sentir e fazer sentir a si mesmo e aos outros que lhe são mais ou menos próximos ou distantes.

Tive acesso a uma reportagem sobre um restaurante brasileiro no qual tudo era feito pelos clientes exceto a comida. Cada um servia-se; pesava o seu prato; anotava o preço deste, das bebidas e das sobremesas e, no fim de tudo, somava o valor total, colocava o cartão de débito na máquina disponível e efetuava o pagamento, deixando o talão no lugar próprio.

Perguntaram ao dono do estabelecimento porque tinha criado este modelo. Respondeu que não podia fazer todas as tarefas, pois só ali trabalhavam o próprio e sua mulher. Ocasionalmente um filho. Quiseram também saber se estava a perder dinheiro com tal decisão, mas a resposta foi que até tinha melhores lucros, pois vinham mais clientes. A sua maior segurança era a consciência das pessoas, dizia, e ainda recordava seu avô que o ensinara que, mesmo quando não podemos mudar o mundo, podemos sempre fazer alguma coisa boa, perto de nós. Desse modo o mundo muda.

Nesta senda de mudança e de transformação, temos assistido a um incremento do turismo e do reconhecimento de que algumas das cidades portuguesas são lugares fantásticos para visitar. Têm tudo, são bonitas, agradáveis, não muito poluídas,… Ao mesmo tempo os edifícios, em lugares ditos mais centrais, vão deixando de ser prédios de habitação e são transformados em hotéis, parte dos quais caros, outros acessíveis a muitos. Certo é que os residentes, esses, são cada vez em menor número.

Mas as cidades estão bonitas, sobretudo para os mais distraídos.

Em Lisboa há canteiros no meio das avenidas, secos e cheios de ervas altas; lagos, em artéria nobre, com águas castanhas e folhas caídas das árvores ou, simplesmente, ressequidos e transformados em depósitos de lixo; pavimentos de rua que vão destruindo os amortecedores dos carros e que se tornam incómodos, mesmo muito incómodos, para os que neles se deslocam; passeios escorregadios de calçada portuguesa, que seriam muito bonitos se estivessem bem cuidados. Tal como os podemos ver, são uma espécie de ratoeiras para os saltos das senhoras, nas quais algumas caem e outras partem as, assim chamadas, almas do seu calçado. Os homens também tropeçam.

Falta dizer muito, mas há pelo menos mais um tópico que, por maior que seja a intenção de síntese, não pode ignorar-se: no tempo, e bem, das preocupações ecológicas, é preciso andar de carro para fazer reciclagem. Os contentores são escassos e, muitos, despejados com pouca regularidade, o que faz com que os plásticos, os papéis, os vidros,… sejam tantas vezes deixados do lado de fora, em plena via pública.

A verdade é que corrigir esta cidade inimiga no que ela tem de mais incómodo para quem a habita, não é algo que se destaque. Faz pouco eco reparar o chão; não se evidencia quem se lembrou que escorregar pode significar cair e estragar a vida a alguém; não dá reportagens aparatosas refazer ressaltos onde alguns veículos, se não abrandarem, ficarão decerto prontos para chegar à oficina mais próxima…

O sentir de cada um faz, naturalmente, parte das suas idiossincrasias. Contudo, sem presumir reunir unanimidades, até porque o que faz da humanidade um verdadeiro luxo, é não existirem dois seres iguais, existe uma consciência coletiva, não apenas no sentido que o sociólogo Émile Durkheim lhe atribuiu, ou um consenso que faz com que estes e outros obstáculos tornem a vida dos cidadãos mais difícil e mais vulnerável e todos ou quase todos pensem isso.

Afinal parece que as coisas que dão menos brado são as mais necessárias e urgentes. Aquelas que, não passando do chão e da paisagem próxima, transformam o estar numa vida agradável e tranquila.

Talvez o pobre narcísico que só faz o que se pode exibir, seja um ser eternamente enganado, convicto de que a vida humana é a única etapa da existência.      

No silêncio dos discretos, na nossa cidade, faz falta fazer obra invisível, daquela que se sente debaixo dos pés, nas caminhadas e nos passeios, acreditando, como disse S. Francisco de Sales, que o barulho não faz bem e que o Bem não faz barulho.

 

Margarida Cordo é psicóloga clínica, psicoterapeuta e autora de vários livros sobre psicologia e psicoterapia.

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