
Nuno Almeida, bispo auxiliar de Braga. Foto: Direitos reservados.
O bispo auxiliar de Braga, Nuno Almeida, diz que é possível limitar as funções de um padre acusado de abusos, contrariando a opinião do patriarca de Lisboa expressa na noite de domingo, e as afirmações do presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), na sexta-feira, durante a conferência de imprensa da assembleia da CEP. Para tentar perceber as regras do Direito Canónico, o 7MARGENS pediu esclarecimentos ao padre Mário Rui de Oliveira, doutor em direito canónico com especialização em jurisprudência penal.
“Referindo-se aos casos de abusos de menores (e de pessoas vulneráveis)”, o bispo Nuno Almeida “está a ser mais fiel à legislação prevista para esses casos e que agora preocupam a sociedade e a Igreja de Portugal”, diz o canonista, que trabalha num dos tribunais do Vaticano. Num esclarecimento que pode ser lido na íntegra na parte final deste texto, o canonista admite que o cardeal Clemente e o bispo Ornelas teriam razão “se considerarmos as suas declarações no contexto de um processo penal normal já iniciado” – por exemplo, um padre “acusado de cometer um determinado abuso sexual com uma pessoa maior de 18 anos”, caso em que se aplicam as normas previstas nos cân. 1717 a 1731 do Código de Direito Canónico.
Na sua página no Facebook, o bispo auxiliar de Braga escreveu, nesta segunda-feira, que o nº 20 do Vademecum do Vaticano para lidar com casos de abuso sexual cometidos por padres prevê que o bispo possa tomar “medidas de tipo administrativo contra a pessoa denunciada, que poderão levar a limitações no ministério”. Tais medidas podem ocorrer até à conclusão de um processo formal, escreve Nuno Almeida.
Na assembleia plenária da CEP de sexta-feira, em Fátima, este responsável foi um dos que mais se bateu por medidas mais concretas de resposta às vítimas, de acordo com informações obtidas pelo 7MARGENS junto de participantes na reunião. “O bispo deve acolher, analisar, avaliar e aprofundar, com a devida atenção, todas as denúncias, independentemente da forma ou do canal utilizado”, escreve o auxiliar de Braga no Facebook.
“Deverá dar todo o apoio e protecção possíveis às vítimas e retirar as consequências necessárias”. E cita, como exemplo, as medidas de tipo administrativo referidas.
Este procedimento é um dos que Nuno Almeida sugere como “caminhos de reconciliação e de cura a favor de quantos foram abusados. Na sua perspectiva, ele devia mesmo ser posto em prática, “sem hesitação”, seguindo o estipulado nos números 9-31 do Vademecum.
Agressor também não deve ser abandonado
Noutro ponto da sua publicação, o bispo – que foi até agora coordenador da Comissão de Protecção de Menores e Adultos Vulneráveis da Arquidiocese de Braga – defende que, também de acordo com o Vademecum (nº 58-65), um agressor pode ou deve ser retirado da actividade pastoral. Trata-se, diz, “de ‘medidas cautelares’ que podem incluir o afastamento ou proibição de exercício do ministério enquanto decorre a ‘investigação prévia’, ou após a sua conclusão”. Mas também o alegado agressor não deve ser abandonado, defende ainda, porque a “redenção é sempre possível”, embora só com a “admissão da culpa” por parte do acusado.
“Diante dos abusos, especialmente aqueles cometidos por membros da Igreja, não basta pedir perdão”, refere o bispo auxiliar no início da sua publicação. E explica, sobre as medidas preventivas que refere: “A medida cautelar não é uma pena, pois as penas só se impõem no final de um processo penal, mas um acto administrativo.”
Também neste pormenor “tem razão o bispo auxiliar quando defende que já na fase preliminar ao processo penal propriamente dito o bispo pode impor algumas medidas disciplinares (não penais) nos casos em que se investiga sobre abusos de menores”, considera o canonista Mário Rui de Oliveira. Mas “para haver uma condenação (ou absolvição) do acusado será obrigatório iniciar um processo penal que pode decidir continuar ou não com essas medidas cautelares”, acrescenta na explicação já citada e que se lê na segunda parte deste texto.
“Diante dos abusos, especialmente aqueles cometidos por membros da Igreja, não basta pedir perdão”, refere o bispo auxiliar no início da sua publicação, citando o Papa Francisco. E explica, sobre as medidas preventivas que refere: “A medida cautelar não é uma pena, pois as penas só se impõem no final de um processo penal, mas um acto administrativo.”
As afirmações do bispo auxiliar de Braga contrariam a opinião do cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, para quem não pode haver lugar à suspensão de padres acusados de abusos “sem que haja factos comprovados, sujeitos a contraditório”, bem como um processo canónico na Santa Sé.
“Essa é uma pena muito grave”, disse o patriarca aos jornalistas, falando à saída da missa que se seguiu à procissão do Senhor dos Passos, em Lisboa, no domingo ao final da tarde. “Não é uma coisa que um bispo possa fazer por si”, acrescentou.
“Quem foi que disse? Em que lugar?”

O presidente da CEP, José Ornelas (ao centro)l na conferência de imprensa de sexta.feira passada. Foto © António Marujo/7Margens
Antes, na sexta-feira, o presidente da CEP e bispo de Leiria-Fátima, José Ornelas, também recusou essa hipótese, colocando como condição a investigação da diocese respectiva. “Não posso tirar uma pessoa do ministério porque chegou alguém que disse ‘Este senhor abusou de alguém’. Quem foi que disse? Em que lugar? Quando? Tirar um padre do ministério é uma coisa grave, enquanto não for minimamente provado, a pessoa mantém a sua credibilidade”, defendeu, na conferência de imprensa em que apresentou as conclusões da assembleia da CEP que decorrera nesse dia.
Ainda aqui Mário Rui de Oliveira, que é também poeta (o seu último livro tem o título O Livro da Consolação), dá mais razão ao bispo auxiliar de Braga: “As medidas cautelares não são penas (as penas só se impõem ao final do processo penal) mas disposições disciplinares (administrativas) com o objetivo de prevenir escândalos, tutelar a liberdade das testemunhas e garantir o decorrer da justiça; por isso não se pode falar de lesar a presunção de inocência, até porque estas medidas devem ser revogadas logo que cesse a causa pela qual foram impostas e cessam pelo próprio direito se o processo penal terminar.”
O bispo Nuno Almeida propõe que se aperfeiçoe a cooperação entre comissões diocesanas – pode “ser conveniente que uma denúncia seja apresentada noutra diocese, justifica –, bem como entre aquelas e as comissões de Protecção de Crianças e Jovens de cada concelho. “Abrir um canal de comunicação com o Ministério Público ou Polícia Judiciária” e “encontrar formas de colaboração com a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima são outras sugestões de Nuno Almeida que, no seu entender, a hierarquia católica deveria promover no imediato.
Finalmente, o bispo auxiliar de Braga sugere a urgente disponibilização de “pessoas e programas de acompanhamento psiquiátrico e psicoterapêutico, bem como de acompanhamento espiritual e de reconciliação para as vítimas que o desejarem”, através de uma “bolsa de técnicos” e de acompanhadores espirituais.
Neste âmbito, o patriarca tinha recusado também, nas declarações de domingo, a possibilidade de a Igreja assumir institucionalmente o pagamento de qualquer indemnização às vítimas. “Até acho isso um bocadinho, desculpem-me a expressão, insultuoso para as vítimas. É porque a generalidade das vítimas não falou nenhuma delas em indemnização”, justificou.
O presidente da CEP, José Ornelas, tinha defendido na sexta-feira que as indemnizações deviam ser requeridas nos tribunais civis pelas vítimas, e que o pagamento deveria ser feito pelo agressor. E o bispo do Funchal, Nuno Brás, defendeu idêntica posição.
Em declarações à Renascença, o presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), Pedro Vaz Patto, divergiu desses argumentos, defendendo que a Igreja deveria indemnizar as vítimas que o solicitem, porque existe “um dever de solidariedade” da Igreja, que vai para lá da “responsabilidade jurídica”. O responsável da CJNP, que depende da CEP, acrescentava que “não fecharia a porta a essa possibilidade”, sublinhando que, na questão do apoio psicológico, a Igreja já não discute “se há responsabilidade jurídica ou não”. “Se tivesse de decidir optava por indemnizar à semelhança do que tem acontecido noutros países.
Quem tem razão?
Instado pelo 7MARGENS a explicar as regras canónicas, o canonista Mário Rui de Oliveira elaborou este esclarecimento.

Mário Rui Oliveira: o bispo auxiliar de Braga está a ser mais fiel à legislação. Foto: Direitos reservados.
O cardeal-patriarca e o presidente da CEP têm razão se considerarmos as suas declarações no contexto de um processo penal normal já iniciado. No caso, por exemplo, de um sacerdote ter sido acusado de cometer um determinado abuso sexual com uma pessoa maior de 18 anos aplicam-se as normas previstas no Código de direito canónico (can. 1717-1731). Neste caso, na investigação prévia o bispo não pode impor as medidas cautelares previstas no can. 1722 porque, precisamente, só podem ser usadas dentro do processo penal (judicial ou administrativo).
No caso dos abusos de menores de 18 anos não é assim. Nesses casos segue-se não apenas o Código mas sobretudo as Normas especiais do Dicastério para a Doutrina da Fé, chamadas Normas sobre os delitos reservados (11 de outubro de 2021, na sua última versão) e as orientações do “Vademecum sobre alguns pontos de procedimento no tratamento dos casos de abuso sexual de menores cometidos por clérigos” (a segunda edição revista é de 5 de Junho de 2022).
O bispo auxiliar de Braga referindo-se aos casos de abusos de menores (e de pessoas vulneráveis) está a ser mais fiel à legislação prevista para esses casos e que agora preocupam a sociedade e a Igreja de Portugal.
A norma que prevê as medidas cautelares durante a investigatio praevia
Segundo o art. 10, § 2 das Normas sobre os delitos reservados ao Dicastério para a Doutrina da Fé é permitido impor desde o início da investigação prévia as medidas cautelares enumeradas no can. 1722 do Código de direito canónico, a saber: “afastar o imputado do ministério sacro ou do ofício eclesiástico impondo-lhe ou proibindo-lhe a residência em algum lugar ou território e até proibir-lhe a participação pública na Eucaristia”, tendo em vista a tutela da boa fama das pessoas envolvidas e o bem público, assim como prevenção do escândalo, a ocultação de provas, as ameaças à presumível vítima e a proteção de testemunhas.
Tudo depende, portanto, da gravidade da acusação. As medidas cautelares não são verdadeiras sanções penais, são disposições disciplinares com caráter provisório e são uma lista exaustiva, pelo que se poderá escolher uma ou mais que uma dentre elas. No fim do processo penal, se o acusado for considerado culpado, impor-se-lhe-á a pena prevista no ordenamento jurídico conforme o delito cometido fazendo cessar estas medidas cautelares.
Vale a pena recordar o princípio de que não pode haver uma pena sem delito e não pode haver delito sem um processo justo com todas as garantias de defesa da parte acusada.
Portanto, tem razão o bispo auxiliar quando defende que já na fase preliminar ao processo penal propriamente dito o bispo pode impor algumas medidas disciplinares (não penais) nos casos em que se investiga sobre abusos de menores, mas para haver uma condenação (ou absolvição) do acusado será obrigatório iniciar um processo penal que pode decidir continuar ou não com essas medidas cautelares.
Vale a pena recordar o princípio de que não pode haver uma pena sem delito e não pode haver delito sem um processo justo com todas as garantias de defesa da parte acusada.
O que fazer e como considerar a lista dos 100 nomes

Patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, na vigília de oração pelas vítimas de abusos sexuais na Igreja, Foto © António Marujo/7Margens
Em termos práticos, agora que as dioceses receberam a lista com os 100 nomes de clérigos alegadamente agressores sexuais, o que se deve fazer? Proibir automaticamente todos os sacerdotes de exercerem o seu ministério sacerdotal pelo simples e terrível fato de estarem numa lista?
Cada bispo diocesano que recebeu a lista deve comportar-se segundo o previsto no Vademecum: considerar a lista como uma informação sobre um delito cometido por um clérigo em termos de abuso sexual de um menor de 18 anos e iniciar o procedimento de verificação da atendibilidade ou probabilidade dessa denúncia. Deve iniciar uma investigação prévia.
Diante desta informação, o bispo não pode cruzar os braços mas tem a obrigação de averiguar, aprofundar e avaliar com a devida atenção a denúncia recebida, sob pena de incorrer num delito punível nos termos do ordenamento canónico.
A notitia delicti pode chegar às mãos do bispo por muitos modos: por uma fonte direta ou anónima; por pessoas não identificadas ou não identificáveis; por jornais ou outros meios de comunicação; pelo ministério público; até por fontes cuja credibilidade possa parecer, à primeira vista, duvidosa e sem detalhes concretos (nomes, lugares, tempos, etc.), etc. Embora vaga e indeterminada, a denúncia deve ser sempre tratada com atenção.
O que deve fazer o bispo ao receber uma denúncia
O bispo deve comunicar quanto antes ao Dicastério para a Doutrina da Fé a informação da denúncia e o resultado da investigação prévia, seguindo depois as orientações que lhe forem dadas pela Santa Sé. Se não houver fundamento na notícia que recebeu, pode decidir não proceder à investigação prévia por manifesta falta de verosimilhança devendo, de qualquer dos modos, informar o Dicastério competente.
Mesmo na ausência de uma explícita obrigação normativa, a autoridade eclesiástica deve transmitir a denúncia às autoridades civis competentes sempre que considere indispensável para tutelar a pessoa ofendida ou outros menores do perigo de novos atos delituosos.
A notícia certa de que um crime de abuso sexual tenha sido arquivado pelas autoridades civis por prescrição não é motivo suficiente para arquivar a investigação prévia porque a Santa Sé pode sempre derrogar a prescrição da ação criminal.
Mesmo na ausência de uma explícita obrigação normativa, a autoridade eclesiástica deve transmitir a denúncia às autoridades civis competentes sempre que considere indispensável para tutelar a pessoa ofendida ou outros menores do perigo de novos atos delituosos.
Aplicar a pena máxima a todos os clérigos imputados de abusos sexuais a menores?
Nem todos os delitos têm a mesma pena. Nos delitos de abuso sexual há também uma hierarquia na gravidade do crime e tudo deve ser julgado e punido em base ao critério da justiça. No Código Penal português, por exemplo, o crime de “importunação sexual” (art. 170°) prevê uma pena de prisão até 1 ano, enquanto o “crime de abuso sexual com prática de ato sexual” (art. 171°) com um menor de 14 anos prevê uma pena de 1 a 8 anos.
No Código de Direito Canónico também é a mesma coisa: nos delitos contra a vida, a dignidade e a liberdade do homem, prescreve-se que deve ser punido com a privação do ofício e com outras penas justas, não excluindo, se o caso o comportar, a demissão do estado clerical o clérigo que cometer uma série de abusos sexuais com um menor de 18 anos (ou com uma pessoa vulnerável), previstos no can. 1398 e nas Normas sobre os delitos mais graves reservados ao Dicastério para a Doutrina da Fé (sobretudo o art. 6).
Mesmo nestes casos reservados está prevista uma “justa pena, segundo a gravidade do crime” e se for clérigo pode (não é obrigatório) ser punido também com a demissão do estado clerical (art. 7).
A presunção de inocência e as medidas cautelares
Quando o cardeal-patriarca e o presidente da CEP falam de “factos comprovados, sujeitos a contraditórios” movem-se no âmbito processual e não no campo da investigação prévia. Por exemplo, a demissão do estado clerical, que seria como uma espécie de pena capital (por ser uma pena perpétua), está prevista que não seja estabelecida pelo legislador inferior (por ex. o bispo, cf. can. 1317), e seja aplicada somente através de um processo judicial (cf. can. 1342, § 2).
A presunção de inocência, que é um dos princípios explicitados na reforma do novo Livro VI dedicado ao direito penal da Igreja (can. 1321), é absolutamente irrenunciável até que se prove o contrário.
As medidas cautelares não são penas (as penas só se impõem ao final do processo penal) mas disposições disciplinares (administrativas) com o objetivo de prevenir escândalos, tutelar a liberdade das testemunhas e garantir o decorrer da justiça, por isso não se pode falar de lesar a presunção de inocência, até porque estas medidas devem ser revogadas logo que cesse a causa pela qual foram impostas e cessam pelo próprio direito se o processo penal terminar.
Roma, 6 de março de 2023
P. Mário Rui de Oliveira, Doutor em direito canónico com especialização em jurisprudência penal