
Cais Favaloro, Lampedusa, Julho 2023. Foto © Pedro Amaro Santos.
À entrada do cemitério velho de Lampedusa, no cimo da Cala Pisana, somos recebidos assim:

Este mar que nos envolve no presente
não é feito só de ondas.
Mas também de ferro e aço,
É uma fronteira que mata,
Tornado assim pelas leis dos homens.
É um mar de farpas em que
penas de liberdade ficam
emaranhadas para sempre perdendo
respiração e memória.
Este símbolo que encontrarás
nos túmulos representa aqueles que,
nos últimos anos,
encontraram um lar eterno
nesta terra, atravessando
a fronteira da injustiça.
Na capela mortuária do cemitério de Lampedusa descansava, na passada quarta-feira, 13 de setembro, o corpo sem vida de uma bebé guineense de cinco meses. Morreu naufragada durante um desembarque pela Guarda Costeira Italiana, em que várias pessoas caíram à água. Chamava-se Traore Mama.
A sua chegada foi uma entre muitas. Desde terça, 12 de setembro, desembarcaram na ilha italiana, que está mais próxima do continente africano do que da Europa, cerca de 7.000 pessoas migrantes. O centro de acolhimento de Lampedusa, com capacidade para 400 pessoas, está em colapso, na tentativa de albergar cerca de 6.000 pessoas. Desde o início do ano chegaram a Itália 115.037 pessoas migrantes. Falamos de números equiparáveis ao número de chegadas no ano de 2015, quando dizíamos viver uma “crise migratória”. Estes números devem fazer-nos questionar as narrativas que nos foram contadas sobre a eficácia das políticas anti-imigração desumanas que foram implementadas nos últimos anos nas fronteiras europeias.
Paradoxalmente ou não, esta semana, enquanto uma mãe adolescente sofria a morte trágica da sua menina nas águas de Lampedusa e centenas de barcos faziam fila para entrar no Cais Favaloro da ilha, debatia-se no coração político da União Europeia, em Estrasburgo, a política migratória externa da UE, em especial o controverso Acordo Tunísia-UE. A intervenção do eurodeputado e médico lampedusano Pietro Bartolo foi clara: os 105 milhões de euros que serão entregues à Tunísia para combater redes de tráfico humano e impedir a saída de barcos de pessoas migrantes para a Europa é um investimento europeu nas políticas brutais de violação de Direitos Humanos perpetuadas pelo Governo tunisino. Muitas vozes defensoras da proteção dos direitos dos migrantes têm afirmado que o Governo de Saied lançou uma verdadeira “caça aos negros” vindos da África Subsariana, tendo deportado ilegal e violentamente centenas de pessoas em trânsito para a fronteira com a Líbia e a Argélia.
Voltemos ao cemitério de Lampedusa. Se caminharmos até à sua zona central, encontramos um lugar com várias cruzes de madeira, simples e desgastadas pelo tempo. Foram feitas pelo artesão da ilha Francesco Tuccio, que encontrou uma forma belíssima de alertar o mundo para a dor que testemunha na terra onde nasceu: constrói cruzes com a madeira das embarcações de pessoas migrantes que chegaram a Lampedusa. Como cristão, para ele estas cruzes têm um significado profundo: são um sinal da luz que ainda virá depois do sofrimento. Com as mesmas ferramentas e máquinas de sempre, a carpintaria de Tuccio transformou-se numa verdadeira oficina de Esperança. Conhecer este carpinteiro é conhecer o povo de Lampedusa e a resiliência humilde que têm imprimido em mais de trinta anos de hospitalidade.


Esta quinta-feira, o dia foi de luto oficial em Lampedusa, pela morte da bebé Traore Mama.
No comunicado do presidente da Câmara de Lampedusa, Filippo Mannino, pode ler-se:
Cidadãos, instituições públicas, organizações políticas, sociais, culturais, desportivas, produtivas e proprietários de empresas privadas de todos os tipos manifestem a sua participação no luto, suspendendo as atividades, em sinal de respeito, durante o encontro que terá lugar na Piazza Garibaldi às 20h00, imediatamente após a Santa Missa, e depois à luz das tochas, até às 21h00.
Lampedusa tem 20.2 km2 e 6.000 habitantes. Não é profundamente comovente que uma pequena população que tem carregado isolada o peso do acolhimento de milhares e milhares de pessoas, consiga, em momentos críticos e de tensão, contrariar o cansaço e continuar a escolher livremente a integridade e a bondade?
Creio que, um dia, o cemitério de Lampedusa estará certamente na lista de locais a visitar, e nele faremos memória da tragédia que a Europa escreveu na sua História, nos princípios do século XXI. Aliás, toda a ilha de Lampedusa caberá nesse Património da Humanidade onde se guardam os lugares que nos relembram as crueldades, os sofrimentos e os ódios de que fomos capazes. Aí, um dia, prestaremos homenagem às milhares de pessoas que morreram às portas da Europa, enquanto reduzíamos as operações de resgate no mar, criminalizávamos a ajuda humanitária e negociávamos, lavando as mãos, com governos falhados e autocráticos do outro lado do mar. No cemitério de Lampedusa, num dia que ainda está longe, mas que virá, pediremos desculpa e diremos “nunca mais”, never again.
Ainda antes desse dia chegar: saibamos que podemos escolher percorrer, já hoje, as ruas do cemitério de Lampedusa e daí partir para a construção de uma Europa diferente. Somos feitos para algo mais e ainda só é um pouco tarde.
Esta quinta-feira, foi dia de luto pela morte da bebé Traore Mama.
Isabel Martins da Silva é cofundadora da MEERU (ONGD de apoio à integração de refugiados), jurista inquieta com a proteção da dignidade humana das pessoas em movimento no mundo, e comprometida a transformar fronteiras em caminhos.