
Cena do filme Benedetta
Apesar de o cristianismo ser a mais corporal das religiões, como diz Timothy Radcliffe pensando no Mistério da Encarnação – o Deus que Se fez carne em Jesus, “em tudo igual a nós excepto no pecado” – e pensando na frase central da fé cristã: “Tomai e comei, isto é o meu Corpo”, a verdade é que (quase) desde sempre o cristianismo conviveu mal com o corpo e a sexualidade. Espiritualizámos tanto a fé, a começar pela própria imagem de Maria, e mesmo de José (que passou a ser um velho), que o corpo e a sexualidade passaram a ser males necessários para a geração de filhos e a fonte de todos os pecados. O persistente dualismo alma e corpo, como se fossem duas coisas separadas e separáveis; o ensinar que aquando da morte o corpo ia para a terra e a alma para o céu; tudo isso e muito mais foi moldando uma mentalidade avessa ao corpo e à sexualidade.
“Quais são os três inimigos da alma?”, perguntava o catecismo. E a resposta era: “Mundo, Demónio e Carne”.
Estamos muito longe do sentido e da beleza da criação, do sentido e da beleza da sexualidade sonhada por Deus no princípio do mundo e da Boa Nova anunciada por Jesus. São as vicissitudes da História da Igreja que é preciso ultrapassar. Porque parece cada vez mais urgente a mudança da linguagem da Igreja em relação a esta dimensão fundamental da pessoa. Sem cair na banalização, ela tem de ser capaz – se quiser ser escutada pelo Mundo – de propor e anunciar aquele sentido libertador que a Palavra de Deus traz dentro de si, como um caminho aberto de felicidade para cada homem e cada mulher.
Vem isto a propósito do intenso, carnal e excessivo filme de Paul Verhoeven Benedetta. Provocador, se quisermos, ainda que me pareça que não é esse o objectivo do realizador. Para quem viu mais algum dos seus filmes percebe que, mais uma vez, o que está primeiramente em causa são as violentas relações de sedução e submissão que se estabelecem entre as personagens, e não apenas por causa da sexualidade, neste filme acrescentadas pela dimensão mística. Tudo bem marcado pela ambiguidade sempre presente, seja na sexualidade seja na experiência mística, também ela intensamente corporal. Os estigmas da paixão de Cristo sangrando no corpo de Benedetta – qual São Francisco de Assis – reais ou auto provocados (nunca teremos a certeza) são o sinal disso mesmo.
O filme, que não põe em discussão as questões da moral sexual nem faz um julgamento da Igreja, confronta-nos com a história de Benedetta Carlini, freira católica, mística e lésbica, que viveu na cidade de Pescia, Itália, dos finais do século XV até meados do século XVI (1591-1661). Foi a historiadora Judith C. Brown que, nos anos 80 do século XX, se debruçou e estudou a figura desta freira controversa. E foi a partir do seu livro Immodest Acts: The Life of a Lesbian Nun in Renaissance Italy que Paul Verhoeven, juntamente com o argumentista David Birke, realizou o filme.
À historiadora interessou-lhe a biografia daquela freira que chegou a abadessa, as suas visões místicas e as suas paixões carnais, por se tratar do mais antigo caso de lesbianismo oficialmente documentado na história da sexualidade no Ocidente. A Paul Verhoeven, que alguns vêem como um realista provocador, interessou-lhe toda aquela ambiguidade e contradições de Benedetta que ele, com mão de mestre, sabiamente vai pontuando do início ao fim do filme. Nem a própria Benedetta sabe dizer se é verdade o que lhe acontece, tal a intensidade física do seu amor a Cristo, mas acaba por saber usar todo o seu poder de sedução – também por causa das suas visões místicas – para vencer os poderosos e sobreviver. E isso desde criança. Veja-se como ela consegue que os ladrões vão embora, logo no início, quando ia com a família a caminho do Mosteiro para que se cumprisse o voto do pai de fazer dela “noiva de Cristo”. Está logo aí tudo o que o filme há-de revelar dela quando adulta. Isso, e quando ela ao ser recebida no Mosteiro, ainda habituada a roupas finas, se queixa da aspereza do novo hábito, e ouve da freira: “o teu corpo é o teu pior inimigo”. Sem esquecer a pequena estátua da Virgem que lhe fora dada pela mãe, e da qual ela também será separada, mas que virá a ter um papel determinante no futuro.
Este filme – de época – passa-se no tempo da Contrarreforma e numa Europa assolada pela peste. Todos andam perdidos e cheios de medos, sem saber ler os sinais do Céu, acreditando uns que é preciso queimar os pecadores e outros à procura de milagres salvadores. Benedetta move-se nestas águas turvas e contraditórias, acreditando que as suas visões e os sinais no seu corpo são capazes de (a) salvar. O que acontecerá, uma vez que, tal como ela tinha profetizado, a cidade foi mesmo poupada da peste.
Não sei se é um filme recomendável. Muitos achá-lo-ão escandaloso e obsceno, apesar de retratar um caso histórico. A mim, nestes tempos de uma terrível vergonha, faz-me pensar na tal necessidade de “salvar” o corpo e a sexualidade de todos os diabólicos hedonismos, puritanismos e obscurantismos, para a iluminar com “o altíssimo e profundo primeiro olhar” do Criador que nos fez “à sua imagem e semelhança”. E faz-me pensar também no indelével dom da liberdade para o qual “Cristo nos libertou”.
Benedetta, de Paul Verhoeven
Título original: Benedetta
Com: Virgine Efira, Charlotte Rampling, Daphne Patakia
Género: Drama; BEL/HOL/FRA, 2021, Cores; M/16; 131 min.
Manuel Mendes é padre católico e pároco de Esmoriz (Ovar).