
“No dia 27 de julho, feriado nacional pela invasão do Quartel Moncada em 1953, o seu discurso (Fidel Castro), longo como sempre, demorou duas horas…”. Foto: Praça da Revolução, Havana, Cuba. © Leonor Xavier
Em julho de 1989 passei dez dias em Havana. Escrevo impressionada pelas recentes notícias de protesto contra o regime, com fortes imagens de manifestações e brutal repressão nas ruas. O povo cubano sofre de crise económica, política, social. Retomo o tempo e o contexto da minha ida, a partir do Rio de Janeiro, com escala em Lima, onde vivi ambiente de terror pelas ações do Sendero Luminoso, a América Latina incendiada.
No ano anterior, Gorbachev tinha estado em Cuba e a URSS [União das Repúblicas Socialistas Soviéticas], pela Perestroika, começava a suspender a sua ajuda total a Fidel Castro. Quando cheguei tinha havido o julgamento sumário e execução dos generais Ochoa e La Guardia condenados à morte por oposição ao regime, mas formalmente por suposto tráfico de drogas. Fidel estava ainda no auge da popularidade. No dia 27 de julho, feriado nacional pela invasão do Quartel Moncada em 1953, o seu discurso, longo como sempre, demorou duas horas, foi transmitido em direto e integralmente repetido várias vezes na televisão.
Longe estávamos de imaginar a cena de janeiro de 1998, com o caloroso aperto de mão entre Fidel e o Papa João Paulo II, que em espantosa viagem o foi visitar a Cuba. Já doente, Fidel preparou-se para receber o Papa, que celebrou missa para meio milhão de pessoas, na principal praça de Havana. Cristãos por tradição e católicos por prática, calculava-se que cerca de metade da população de 11 milhões seria de cubanos crentes.
Assim, quando entrei na Catedral de Havana, e logo à esquerda reparei num enorme painel, guardei e descubro hoje mesmo, quase apagada pelos anos, a fotografia que então fiz. Com esforço, consegui copiar o texto. Comovente e extraordinário, agora relido. Quando penso na firme e radical execução política do regime, que bem percebi, mais intensa se torna a linguagem de missão.
Transcrevo, tal e qual; a tradução é minha, sem alterações. Mantenho as maiúsculas, também assim no original:
“No começo da nossa era um homem único fez a sua entrada na história da humanidade. Este homem pode significar a tua mais nobre esperança de que um melhor futuro haverá para todos os povos.
Chamou-se JESUS.
Ofício carpinteiro, seus amigos lhe chamavam Mestre. Ensinou que os pobres e aqueles de quem se diz que são maus são os primeiros para Deus.
que a liberdade é fazer sempre o bem.
que o homem vale pelo que é ou não pelo que tem ou pelo que se pode tirar dele.
que a vida é vida quando lutarmos para viver como seres humanos Deus está do nosso lado.
que não há um Deus distinto para cada um.
que há um Deus para todos que se chama PAI.
que não se deixa comprar nem controlar dá sim amor livremente e não suporta a hipocrisia nem a injustiça
que a religião não é magia nem ritos nem velhas tradições nem aparências.
que a religião é agir com retidão perante Deus. É viver limpamente a vida. É cumprir com os deveres de cada um. É tratar os outros como irmãos.
que a religião que agrada a Deus é o bem que se faz aos outros.
Vivia o que ensinava e a sua doutrina era entendida como subversiva. Por dizer estas coisas o mataram os poderosos da sua época. Mas não puderam apagar o seu nascimento nem apagar o que incendiou com a sua vida.
Porque Cristo VIVE?
Vive no coração dos que o amam e lhe entregam a sua vida. Porque veio vencer todos os males e triunfar também sobre a morte. Vive porque ressuscitou e está connosco. Com o seu nascimento começou um mundo novo que ainda está por completar. Ele deu o primeiro impulso e a nós cabe-nos continuar… Passaram muitos anos desde que esteve entre nós. Dele se disseram muitas coisas. O tempo e o nosso comportamento puderam desfigurar a sua atuação e os seus ensinamentos.
A Igreja que ele fundou quer-te dá-lo a conhecer .”

“Comoveu-me o despojamento barroco da Catedral, Jesus de certeza passa pela alma da cidade” . Foto: Catedral de Havana (Cuba) © Leonor Xavier
No meu livro Casas Contadas (2009) encontro o comentário: “Comoveu-me o despojamento barroco da Catedral, Jesus de certeza passa pela alma da cidade. A escrita num painel à entrada tinha o traço e um evangelho desesperado na dourada decadência de Havana Velha.”
Acrescentando as circunstâncias da minha estadia em Cuba. O embaixador cubano em Portugal, German Blanco, sabendo da viagem do Raul Solnado pelo pedido de visto de entrada no país, providenciou um carro com motorista e uma senhora que nos acompanhou em várias visitas na cidade. Assim o vocativo compañeros esteve a toda a hora na minha vida em dez dias de Havana. Assalto e violência eram coisas de capitalismo, depois das oito horas da noite só com salvo-conduto os cubanos podiam circular nos hotéis, as lojas eram para estrangeiros, os comércios de alimentação tinham filas de gente à porta e prateleiras vazias. As pessoas eram doces e amáveis, os intelectuais, os atores e atrizes, os artistas faziam autoria de criação socialista. Vi doentes operados aos olhos num grande hospital, conheci a mítica atriz Raquel Revuelta. O Hotel Habana Libre, onde aconteceu a Revolução, era um cenário de grandiosa decadência. Estive no Teatro de Havana num concerto de música clássica a comemorar os 200 anos da Revolução Francesa. Em noite de gala, a elite cubana ali me apareceu. Circulámos entre homens com suas guayaberas de linho, mulheres com penteados e alguns enfeites. Serviam-se mojitos. A senhora “de tomar conta “não foi.
Mais, relembro os cubanos que conheci no Brasil, depois da Baía dos Porcos. Hoje, sei de alguns outros que nestes anos saíram para os EUA. Ou, em geral, pelas notícias.
Penso no Cristo Jesus de Havana.
Leonor Xavier é escritora e jornalista.