
Amadeo de Sousa Cardoso. ZINC (Cristo com Espelho), 1917. Óleo e colagem sobre tela. Direitos reservados
Antes de abrirmos as terrinas, antes de virarmos as bocas dos pratos para o tecto, antes de baralharmos as facas e os garfos, a minha avó obrigava-nos a fechar os olhos e orar. A minha avó deixava a porta semiaberta durante a oração; depois do ámen encostava a porta. Cristo era tão humilde em nossa casa, entrava do pequeno espaço que a minha avó deixava entre o aro e a porta. Era um espaço pequeno que o vento até empurrava-se para caber, mas Cristo sem nenhum ruído entrava e sentava-se connosco à mesa. Era assim todos dias. Quando terminava o jantar, a minha mãe sacudia o pano da mesa pela janela e Cristo continuava connosco na mesa arrumando as nossas orações no seu enorme tabuleiro de silêncio.
Depois do jantar a minha avó orava novamente, pedia a Cristo para que se dividisse em vários Cristos e nos acompanhasse aos quartos. Eu ainda era pequeno e sempre dizia que não precisava de um Cristo grande; queria um pequeno Cristo, magro e que conseguisse dobrar-se na minha caminha. Mas Cristo, às vezes, adormecia comigo na sala e a minha mãe carregava-me primeiro e voltava para exumar Cristo da cadeira; era pequeno, cabia em seus braços. Cada um ia ao quarto com o seu Cristo. O Cristo do meu pai preferia ficar na sala, pois o meu pai vinha sempre desfeito de vinho, empurrava as paredes, pontapeava os seus próprios passos e descarregava no quarto bagagens de insultos que não conseguia deixar no bar.
E a minha avó, no seu quarto cheio de agulhas, tesouras, linhas e restos da sua juventude nos sapatos, falava com Cristo e derrubava pequenos objectos de silêncio que se penduravam nos enormes cabides do escuro de toda a casa. E depois adormecia com a sua voz dissolvendo-se na espoja dos seus roncos. Dormia com a oração seca entre os lábios.
Pela manhã a minha avó, saudades tuas avó, ia ao meu quarto e mostrava-me a almofada onde o meu pequeno Cristo tinha se encostado durante a noite, fazia-me sentir o seu cheiro nos lençóis e depois obrigava-me a agradecê-lo orando. Depois a minha avó começou a adoecer, perdeu o movimento dos pés, esqueceu todas as palavras e não mais se importou em falar.
Aos poucos a minha avó deixou de falar com Cristo, já não convidava Cristo para jantar connosco, pois ocupava-se mais em encher a mão com comprimidos e empurrá-los na garganta com uma caneca de água. Cristo começou a não ter mais espaço para entrar em nossa casa, a porta estava sempre cravada com uma chave, não havia o mínimo espaço que a minha avó deixava; depois do jantar, cada um já não levava um pequeno Cristo para o quarto, ia ao quarto vigiado pela sua própria sombra.
E a minha avó de cama, sem palavras para chamar Cristo, sem força para deixar a porta semiaberta e sem mais voz para conversar com Cristo e derrubar a loiça do silêncio nas prateleiras do escuro. Quando fiz nove anos vi a minha avó dormindo de olhos abertos; a minha mãe, carregada de soluços, veio lhe fazer descer as pestanas como se apagasse o mundo da sua vista. Depois o meu pai vestiu uma camisa preta, os meus irmãos tiveram fitas pretas nos bolsos das camisas, depois muita gente abraçou o meu pai, depois a minha mãe escondeu uma caneca de lágrimas no nó do seu lencinho, depois os meus tios saíram com a minha avó no carro da funerária, depois a minha avó nunca mais voltou, depois Cristo nunca mais veio lá em casa.
Na casa da minha avó, antes de abrirmos as terrinas, antes de virarmos as bocas dos pratos para o tecto, antes de baralharmos as facas e os garfos, orávamos e convidámos Cristo a entrar e a sentar-se connosco à mesa. Mas quando a minha avó morreu, Cristo ficou na varanda de casa e corria para a janela para ter o que a minha mãe sacudia do pano porque já não jantava connosco.
Sérgio Raimundo é jornalista moçambicano, actualmente a residir em Faro.