Em Portugal, há cerca de três milhões de pessoas com menos de 30 anos. Para dar voz às suas inquietudes e preocupações, e levá-los a reflectir sobre os seus compromissos sociais, um encontro no próximo sábado, em Lisboa, irá ouvir histórias de resiliência, criatividade, proximidade e empenhamentos.

Tal como na primeira edição, que decorreu em 2018, o evento terá lugar na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa. Foto © Nuno Gonçalves.
A iniciativa começará com um “discurso de balneário” de Tomaz Morais, seleccionador nacional de râguebi entre 2001 e 2010, que levou a equipa d’Os Lobos – como é designada a selecção portuguesa da modalidade – aos melhores feitos até hoje conseguidos no râguebi nacional. Depois dele, Vanessa Lopes, jovem cigana licenciada em Comunicação Social, contará porque é que, graças à sua luta para continuar os estudos, a irmã mais nova já não teve que se preocupar em dizer aos pais que queria estudar. A batalha de Vanessa, numa cultura ainda muito avessa a que as raparigas prossigam com os estudos “valeu a pena”, dirá ela, repetindo o que já contou várias vezes em diferentes ambientes. E perguntará: “Questionamos ou aceitamos o que nos é imposto?”
Estas serão as duas intervenções iniciais da segunda edição do encontro 3 Milhões de Nós, que no próximo sábado, entre as 9h e as 18h, decorrerá na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa. Promovida pela Fraternidade Missionária Verbum Dei, a iniciativa conta com a intervenção de duas dezenas de pessoas, entre as quais o cardeal José Tolentino Mendonça, o cantor Dino d’Santiago ou o pedopsiquiatra Manuel Salavessa.
“Trata-se de ajudar os jovens a poder pensar, a questionar o que vivem, não ficando no sofá nem apenas a jogar videojogos, aprendendo o sentido crítico”, explica a irmã Núria Frau, da Fraternidade Verbum Dei, uma das responsáveis do encontro. Até esta quarta à noite, havia já um milhar de inscrições; na primeira edição, em 2018, participaram 1600 pessoas – mais de metade das quais entre os 14-15 anos e os 21. Um dos oradores foi Ricardo Araújo Pereira, cujo vídeo já atingiu perto de 500 mil visualizações.
Em relação à primeira edição, a média etária dos oradores é mais baixa, estando desta vez na casa dos 30 anos, com vários oradores entre os 20 e 30.
O título 3 Milhões de Nós funda-se no facto de, em Portugal, cerca de três milhões de pessoas terem menos de 30 anos e por ser a pensar nas gerações mais novas que o encontro é organizado. Dar-lhes voz, mas também levá-las a reflectir. Maria João Quintão, outra das responsáveis pelo programa e professora de Matemática na Universidade Nova, diz que a iniciativa pretende que haja muita interacção entre os apresentadores e os participantes.
O privilégio, a doença e o “ilegal”

Há uma diversidade de histórias, origens, motivações sociais e experiências que os diferentes oradores irão contar na Aula Magna. Desde João Marecos, o jovem advogado que diz que teve tudo à partida e que irá partilhar que entende que os privilégios com que cresceu o responsabilizam – o privilégio tem sido tema de vários escritos seus; por contraste (ou não), Ana Isabel Ribeiro, que foi professora de artes plásticas e de trapezismo no Chapitô, falará de como uma doença lhe roubou o equilíbrio e a audição- e de como, fazendo da fraqueza a sua força, criou uma oficina de actividades para os mais pequenos com o nome “Um artista aí em casa”. Na sua intervenção, perguntará o que define cada pessoa como pessoa.
Histórias de resiliência e compromisso social serão várias: João Francisco Lima, filho do actor Pedro Lima, falará da importância que a saúde mental teve na sua vida, depois da experiência da perda do pai – e de como não é vergonha pedir ajuda; Marino Gaspar também contará o que tem sido reconhecer as ajudas que recebeu para recuperar de experiências traumáticas da infância, vividas com a sua mãe. E Miguel Duarte contará a sua história: há dois anos, chegou a ser constituído arguido em Itália, por alegada ajuda à imigração ilegal – foi entretanto ilibado da acusação, depois de ter estado no navio Juventa a tirar do Mediterrâneo pessoas em perigo (como o 7MARGENS noticiou em 2019). Há dias, Miguel voltou ao mar à procura de refugiados; por essa razão, o seu testemunho foi gravado para passar em vídeo.

O encontro tem uma dinâmica simples: intervenções curtas, de cerca de 10 minutos, agrupadas em quatro temas: o que está nas nossas mãos?; está nas nossas mãos pedir; está nas nossas mãos dar; está nas nossas mãos ir mais além.
“A pandemia obrigou-nos a todos a irmos todos para casa, mas as nossas casas são todas diferentes. E é desses diversos pontos de partida que queremos construir diferentes perspectivas”, explica Maria João Quintão.
“Sentimos que a pandemia nos mostrou que nem tudo está nas nossas mãos; por isso, ela convocou-nos para vermos o que está nas nossas mãos e o que não está”, acrescenta Núria Frau, acerca do modo como o tema do encontro foi sendo construído.
Pormenor importante: o encontro, sendo organizado por duas instituições católicas, é aberto a todos – crentes e não crentes, jovens e adultos: pais, educadores e técnicos. “Tem uma inspiração cristã, mas queremos a porta aberta para a sociedade, para que esta se debruce sobre os jovens, sobre as situações que os preocupam e não preocupam”, diz a irmã Núria. Está claramente “focado nos jovens e para os jovens”, insiste.
“Os oradores são convidados não por serem católicos, mas pelo compromisso social que assumiram”, acrescenta a irmã Núria, que considera que temas como a intervenção política também pode ter o seu lugar. “Temos de fazer uma reflexão séria sobre essa questão, para levar os jovens a arregaçar as mangas para transformar o mundo, na cidadania, na política, na ética no trabalho, no compromisso cívico, nas organizações. E a serem pessoas preparadas para enfrentar a realidade.” O que se torna mais importante ainda, num ambiente em que, diz, sente que a Igreja e vários movimentos católicos são “profundamente conservadores”. É preciso “estruturar os nossos grupos para lhes dar estrutura e sentido crítico, para fazer com que a oração os leve ao compromisso e transforme a vida”, defende.
Peixeiro em vez de informático, contra a vontade da mãe

Durante o dia, sucedem-se outros testemunhos: sobre a saúde espiritual e a abertura à transcendência, sobre a inclusão, a sustentabilidade, o desperdício zero, a descoberta do campo pessoal de intervenção na sociedade, a medicina como vocação e relação com os doentes…
Maria João recorda, a propósito do modo como muitos jovens descobrem o que querem fazer na vida, a história de um aluno que, frequentando um curso de informática, insistia em que queria ser peixeiro, contra a vontade da mãe – mas seguindo as pisadas da família… Só se sentiu feliz quando foi trabalhar como peixeiro, conta.
Esta responsável cita ainda duas outras histórias de alguns dos oradores convidados: Martim Ferreira, aluno de um mestrado de gestão na Universidade Nova, criou, com o início da pandemia, a iniciativa Vizinho Amigo, que juntava pessoas que não podiam sair de casa aos voluntários que lhes faziam as compras ou tratavam de outras coisas; em pouco tempo, o movimento chegou a quase 8 mil voluntários.
Dino d’Santiago é outra história inspiradora, diz Maria João Quintão: o cantor nascido no bairro dos pescadores de Quarteira sentia-se como sendo parte do bairro; na adolescência começou a ser vítima de racismo e a não se sentir de lado nenhum; só quando assumiu a herança 100% cabo-verdiana e 100% portuguesa é que teve sucesso, inclusive na música, como o próprio também já contou; e essa herança de diversidade cultural permite chegar a mais gente, conclui.
O encontro admite ainda inscrições, até à hora do seu início, com o custo de dez euros, que incluem já o almoço e podem ser feitas na página da iniciativa. O uso de máscara é obrigatório e à entrada será pedido certificado de vacinação ou teste negativo à covid-19, de acordo com as regras em vigor.