A editora Dom Quixote coloca à venda nesta terça-feira, 15, um’A Vida de Jesus, que se apresenta como se fosse uma biografia. O seu autor é Andrea Tornielli, diretor editorial dos media vaticanos no Dicastério para a Comunicação da Santa Sé, que utiliza excertos de discursos, homilias e intervenções do Papa Francisco para a escrever.
O livro propõe-se ser um relato da vida de Jesus de Nazaré baseado em estudos históricos: do nascimento à morte na cruz, Tornielli utiliza episódios dos quatro Evangelhos que congrega numa narrativa única dos textos, mesclando-os com uma “tentativa pessoal de reconstruir com a imaginação, e com a ajuda dos mais autorizados estudos históricos, tudo aquilo que os apóstolos não escreveram”.
Comentários e reflexões que o autor coligiu do Papa Francisco acompanham cada episódio, numa reflexão que pretende também atualizar a mensagem dos evangelhos trazendo-a para a contemporaneidade.
Andrea Tornielli é diretor editorial dos media vaticanos no Dicastério para a Comunicação da Santa Sé. Anteriormente trabalhou como jornalista na revista mensal 30 Giorni, do movimento Comunhão e Libertação, nos diários Il Giornale e La Stampa e no sítio da internet Vatican Insider. É autor de vários livros, entre os quais O Nome de Deus é Misericórdia (ed. Planeta), que resultou de uma entrevista com o Papa Francisco, a propósito do Ano da Misericórdia.
0 7MARGENS publica a seguir alguns excertos da apresentação do Papa Francisco e da introdução do autor.
O Evangelho todos os dias, para encontrar Jesus
(Apresentação – Papa Francisco)

Há muito que venho aconselhando a todos um contacto direto e quotidiano com os Evangelhos. Porquê? Porque se não temos um contacto diário com a pessoa amada, dificilmente poderemos amá-la. O amor não se vive pelo correio, não se pode cultivar apenas à distância: certamente, algumas vezes pode acontecer, mas são exceções. O amor precisa do contacto contínuo, do diálogo constante; ouvir o outro, acolhê-lo, olhá-lo. É partilhar a vida. Se não experimentamos Cristo vivo, aquele com quem o Evangelho nos põe em contacto, arriscamo-nos a alcançar apenas ideias ou, pior, ideologias sobre o Evangelho. Teremos contacto não com Jesus, o Vivente, mas com opiniões e pensamentos sobre Ele, alguns dos quais verdadeiros, outros não. Mas não fomos salvos por ideias, mas por uma pessoa, Jesus Cristo. Então, levar consigo um Evangelho de bolso e ir lendo alguma coisa, até várias vezes por dia, é como levar consigo a «refeição» quotidiana. É fundamental «alimentar-se» com Jesus, alimentar-se de Jesus. Há duas mesas, como nos ensinou o Concílio: a Eucaristia e a Palavra. Ir ao Evangelho – ao pequeno Evangelho de bolso, ao grande Evangelho que temos em casa, às leituras do dia que nos chegam no nosso smartphone – é um modo para ver Jesus concreto, para o encontrar. É a via para o acolher diversamente de como nos é apresentado pelos teólogos e pelos exegetas, o que é precioso, mas é outra coisa. A salvação na verdade é algo, Alguém concreto, e acontece por isso na concretização de um encontro pessoal. Deus comunicou durante séculos o anúncio da salvação através da voz dos profetas, mas a certa altura aquele tempo chegou ao fim e Ele próprio se fez carne, se fez homem, veio viver no meio de nós. Ter o Evangelho à mão para o ler várias vezes por dia – basta pouco tempo – é acolher o Verbo incarnado, é compreender que o nosso credo não é apenas uma lista de artigos de Fé, mas uma pessoa viva, Jesus. A nossa Fé é Jesus. Podemos conhecer todos os dogmas, ser católicos esclarecidos, mas sem um contacto constante com o Evangelho permaneceremos cristãos só na cabeça, e a Fé não descerá ao coração, não habitará a vida. Para ser cristão é preciso, pelo contrário, que o Verbo, isto é a Palavra, desça em nós e venha habitar em nós.
O Evangelho não é apenas uma história do passado ou um relato edificante com bons ensinamentos morais. O objetivo da Palavra de Deus não é tanto o de falar à nossa mente: o objetivo é o encontro. A Palavra de Deus é um dom para o encontro: o Senhor veio a nós com o Seu Filho – que é a Sua Palavra – para nos encontrar. Sem encontro, o Evangelho permanece uma história que leio, que me fala de um Mestre que oferece ensinamentos de vida. Pelo contrário, quando me encontro com o Senhor na Sua Palavra, nasce e renasce um sentimento de espanto, coisa que dificilmente provamos lendo o Evangelho apenas intelectualmente, como uma narração histórica. O espanto é o perfume de Deus que está a passar naquele instante. (…) Nos Evangelhos encontraremos, sine glossa, o estilo de Deus: a proximidade. E no interior desta proximidade estão mesmo compaixão e ternura. (…)

Um aspeto decisivo que sempre me impressiona ao ler o Evangelho é a importância dos olhares, um pormenor sobre o qual se detém também este A Vida de Jesus. Alguns olhares cruzam-se: pensemos em Zaqueu, em cima de uma árvore de um modo algo grotesco, que deseja ver Jesus sem ser visto, e é pelo contrário olhado pelo Senhor, o qual lhe diz que irá a sua casa. Pensemos no cego de Jericó: não podia ver, mas procurava o olhar de Deus, queria ser olhado por Jesus, e até ter encontrado esse olhar pousado sobre si, não deixou de gritar, de pedir, de suplicar. (…) Não basta apenas ler, não basta ouvir, é belo entrar na primeira pessoa nos episódios evangélicos, compondo na mente e no coração o olhar de Jesus. Imaginar, por exemplo, os Seus olhos a pousar-se, entre tantas pessoas, sobre uma pobre viúva que dá uma pequena esmola no Templo: o olhar de Jesus perscrutava os mestres da Lei que passavam no Templo para se fazer notar e mostrar-se perfeitos, mas depois foi atraído por aquela viúva que doa duas pequenas moedas, dois trocos, mais do que todos porque era tudo o que tinha. Aquele olhar é a canonização da generosidade. (…) Outras vezes, estamos diante de olhares incapazes, que num primeiro momento não conseguem ver o Senhor: pensemos nos discípulos de Emaús. Os seus olhos estavam como que velados. Pensemos em Madalena, quando vai ao sepulcro, e pensa que Jesus ressuscitado seja o jardineiro. E depois o Senhor manifesta-Se: o mesmo nos acontece a nós, quando pegamos no Evangelho, lemos alguma coisa e ao nosso olhar a certa altura o Senhor se revela, se manifesta, e temos a experiência espiritual única do espanto, que nos faz encontrar Jesus.
Repito: não há Fé sem encontro, porque a Fé é o encontro pessoal com Jesus. É aquele «Acredito, Senhor, mas ajuda-me para que a minha Fé cresça; ajuda-me porque sou débil.» Uma das coisas que nos ajudará quando estivermos diante do Evangelho é imaginar os encontros com Jesus: recriá-los, olhar para Ele também nós, encontrarmo-nos com Ele. Nos Evangelhos, olhar e ver são dois verbos importantíssimos. Aproximemo-nos então dos episódios da vida de Jesus com os olhos cheios de contemplação. É verdade que a Fé começa com a escuta, mas o encontro começa com o ver. Por isso é importante ouvir e ver Jesus nos Evangelhos. O ver une-se mais facilmente à memória, que faz crescer a Fé cristã: é, como ensina São João, e em geral toda a Sagrada Escritura, a memória das coisas que vimos e ouvimos. (…)
Um telefonema
(Introdução do autor)

Na origem deste livro está um telefonema de um amigo padre, Primo Soldi, que um dia de manhã, durante o lockdown de 2020 me telefonou e me disse à queima-roupa:
«Porque é que não escreves uma vida de Jesus com os comentários do Papa Francisco?» Eram os dias dramáticos da primeira fase da pandemia e o bispo de Roma acompanhava milhões de pessoas em todo o mundo com a missa em Santa Marta transmitida em direto pela rádio, televisão e na Internet.
Respondi ao padre Primo que iria pensar, apesar de o desafio me parecer inultrapassável. Como poderia eu pretender escrever uma vida de Jesus? Sobretudo, como poderia ter tal pretensão sem ter uma específica preparação teológica, bíblica, filológica?
É certo que era reconfortante o facto de que quem comentaria ao longo da narrativa seria o Papa, porque eu usaria os seus textos, homilias, documentos, discursos improvisados.
Sempre me impressionou a insistência com que Francisco continua a pedir aos fiéis para sair de casa com um pequeno Evangelho sempre no bolso, para não perder o contacto quotidiano com os encontros, os rostos, as palavras de Jesus. (…) Também me impressionou muito a insistência com que nas homilias, especialmente nas improvisadas, o Papa Francisco convida a «ir lá», a entrar nas cenas evangélicas, a deter-se para olhar para os personagens descritos. Pertence de modo especial à tradição jesuítica esta prática de meditar «entrando» no Evangelho, revivendo-o e tornando-o atual. (…)
Tratava-se (…) de me pôr em causa a mim próprio. Era preciso medir-me por aquilo que sou – portanto, com os meus próprios e evidentes limites – com o facto cristão relatado nos Evangelhos. Era preciso identificar-me, entrar naquelas cenas definidas há quase dois mil anos por testemunhas apaixonadas por Jesus, que acreditavam Nele, e, por isso mesmo, atentas e escrupulosas ao transmitir o que d’Ele tinham visto, ouvido, experimentado, recolhido, vivido. Era preciso tentar estar ali, deixar-me impressionar, surpreender, espantar, comover pelo olhar e pelas palavras do Nazareno. Para o encontrar a Ele, à Sua Pessoa, que é o autêntico coração da Fé cristã.
Precisamente para sublinhar isto, com a consciência de ser um anão sobre os ombros de gigantes, quis permitir que o livro citasse o místico sacerdote franciscano Maurice Zundel. É uma frase que «roubei» a um outro bem mais profundo e respeitável A Vida de Jesus, o que foi escrito em 1936 pelo jornalista e dramaturgo francês François Mauriac, prémio Nobel de Literatura. Mauriac antepôs estas palavras de Zundel ao seu afortunadíssimo best-seller: «O Cristianismo reside essencialmente em Cristo.»

Sublinhar isso neste prólogo não significa de modo algum distanciar-me do precioso trabalho dos filólogos, dos exegetas e dos teólogos que cem vezes olharam à lupa cada versículo dos Evangelhos comentando-o e explicando-o. Significa, pelo contrário, reconhecer que o encontro com Jesus, hoje como há dois mil anos, é uma questão de coração, de olhares, de comoção que nos agarra visceralmente: isto é, é mais na Sua pessoa do que na Sua doutrina. (…)
Há algum tempo, enquanto ouvia a leitura de uma passagem do Evangelho de São Lucas durante uma missa matinal na capela da Rádio Vaticana, surpreendi-me ao voltar a ouvir a lista dos doze apóstolos que refere três nomes repetidos duas vezes: entre aqueles que seguiram Jesus, vivendo com ele todos os momentos da sua vida pública, havia dois chamados Simão, dois Tiago e dois Judas.
Ouvira aquela passagem tantas vezes. Mas só então pensei: que romancista, que dramaturgo, que escritor livre de «inventar» e moldar os dados que possui para fins catequéticos, teria podido introduzir um elemento de confusão semelhante nos nomes dos protagonistas da sua história? Uma confusão que o teria sempre constrangido a dever especificar o cognome ou o nome do pai para distinguir sobre qual dos dois Simão, dos dois Tiago e dos dois Judas se estava a referir naquele momento.
A mim, que não sou exegeta nem sei fazer a crítica do texto, pareceu-me mais um minúsculo indício do facto de que aqueles homens – na sua maior parte pescadores ou cobradores de impostos e, portanto, homens concretíssimos – tinham contado, descrito, transmitido tudo aquilo de que haviam sido testemunhas oculares. Os seus olhos eram os olhos da Fé pascal, mas a sua Fé era baseada na experiência vivida com Jesus e com os outros apóstolos e discípulos. E deve haver um motivo pelo qual até hoje não foi feita nenhuma descoberta credível capaz de desmentir nem sequer um dos versículos evangélicos.

Sobre estes assuntos já correram rios de tinta e também eu, como jornalista e divulgador, me ocupei deles amiúde em artigos, entrevistas, recensões, ensaios. É como se agora, depois de um «catecumenato» de interesses e curiosidades que durou quase meio século e de uma atividade profissional de mais de trinta anos, tivesse sido desafiado a dar mais um passo: já não escrever detendo-se nos pormenores, nas discussões sobre a historicidade dos Evangelhos, nas muitas razões para acreditar, mas em vez disso «entrar» no Evangelho para encontrar o seu Protagonista, «vivê-l’O», «vê-l’O» falar, comover-se, difundir o Seu olhar de misericórdia e a Sua Palavra de redenção e libertação.
O Evangelho, a história da vida de Jesus graças ao testemunho dos Seus amigos, assume o seu pleno significado apenas na consciência e na experiência de que Ele, o Nazareno, está vivo hoje e sem Ele não podemos fazer nada. E é possível encontrá-l’O hoje da mesma idêntica maneira que há dois mil anos nas margens do lago de Tiberíades, deparando-se com o Seu rosto, com os Seus gestos, com as Suas palavras, com os Seus sinais e com os rostos e os relatos dos Seus amigos fascinados por Ele.
Precisamos, portanto, de encontrar Jesus vivo hoje, precisamos de O aperceber no rosto dos que estão longe, dos que sofrem.
Precisamos de O encontrar procurando «factos de Evangelho» (copyright do meu amigo e mestre Luigi Accattoli). Aqueles factos de Evangelho presentes à nossa volta. Precisamos de O encontrar vivo hoje no rosto de quem vive para Ele e nos testemunha o que quer dizer amar, acolher, abraçar, ser misericordiosos e livres como Jesus nos ensina e nos permite ser todas as vezes que, em vez de perseguir o poder, os aparelhos, as estruturas, doutrinas e regras, lhe damos espaço a Ele e permitimos que venha ao nosso encontro para nos dizer: «Vem e vê.»