O futuro da sociedade inscrito no futuro da religião

| 22 Abr 19

Uma leitura de: Alfredo Teixeira, Religião na Sociedade Portuguesa. Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa 2019

Sociólogo, antropólogo, teólogo e músico, Alfredo Teixeira consegue juntar as suas múltiplas competências num discurso complexo e dialeticamente multifacetado, em que a aridez dos dados sociológicos é animada pela carne do olhar antropológico (que vê gente dentro dos fenómenos), os números são substanciados pelos símbolos e os factos são reconhecidos na independência não autossuficiente da verdade. O discurso científico, sabe este autor inquieto e insatisfeito, desenvolve integralmente o seu potencial apenas no diálogo com a beleza que não se deixa explicar e com o seu próprio autotranscender-se como mistério. O sociólogo que não pode não se dizer antropólogo, mantém assim a rota do seu percurso de investigação olhando para o céu da música e da teologia, não sendo porto aquilo que ele procura, mas unicamente direção.

Esta pluralidade dinâmica e enriquecedora floresce com força no último livro do investigador, Religião na Sociedade Portuguesa (Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2019), texto pequeno pela dimensão, mas de grande envergadura teórica, sinopse densíssima de uma vida de investigação dedicada ao fenómeno religioso na sociedade portuguesa.

O formato não académico do livro (publicado na série Ensaios da Fundação, uma coleção de textos que pretendem apresentar o saber fundamental relativo a uma disciplina ou a um tópico a um público não especialista) ajuda à decantação de um longo caminho de pesquisa e reflexão numa síntese conceptual purificada de idolatrias bibliográficas (a literatura de referência fica devidamente registada, mas sem sobrecarregar o texto de notas que interrompem o fio do pensamento) e tecnicismos nebulosos. O resultado é assim uma síntese cristalina dos factos e das hipóteses interpretativas adquiridos ao longo de anos de investigação no campo dos fenómenos e das ideias, nos inquéritos e nos livros, reunidos num quadro geral do estado do religioso em Portugal no ano do Senhor de 2019.

São três as coordenadas de fundo que caracterizam este panorama, segundo Teixeira: destradicionalização, individualização e diversificação.

Na grande evolução conhecida por Portugal no meio século decorrido após a Revolução de Abril, o fenómeno religioso não é excepção: se a Revolução não foi em si um fator directo de mudança neste campo, as consequências sociais que ela desencadeou, contribuindo para recuperar rapidamente o atraso do país em relação ao resto de Europa, foram determinantes em redefinir o perfil da pertença e da crença religiosas, no sentido de uma modernização tumultuosa e difusa.

Longe de poder ser configurada no paradigma clássico da secularização, que identifica a modernização com o declínio da religião, realça Teixeira, esta modernização apresenta-se efetivamente como processo ‘pós-secular’ de redefinição da presença social do religioso, na crescente dissociação da experiência religiosa individual da normatividade e das práticas institucionais (individualização), assim como dos códigos simbólicos de transmissão coletiva (destradicionalização) e do monopólio católico vigente por séculos na sociedade portuguesa (diversificação).

Modernização não significa por isso menos religião, mas menor uniformidade social, confessional, axiológica e comportamental da experiência religiosa. No Portugal contemporâneo, o deus da minha terra, foco simbólico de uma religiosidade tradicional de cariz campesino, sedentário e politicamente manipulada em prol de um nacionalismo autoritário, deu lugar a uma pluralidade incontrolável e fragmentada de constelações simbólicas, em que a crença se emancipa da pertença (e vice-versa), em que a afetividade (núcleo quintessencial da religiosidade portuguesa segundo a célebre definição de Frei Bento Domingues) se torna preponderante, do ponto de vista identitário, sobre a ortodoxia confessional e a ortopraxia ética e ritual  (no prevalecer da autorregulamentação moral e na rarefação despreocupada da regularidade da prática sacramental).

Os portugueses, verifica Teixeira, continuam a ser maioritariamente crentes, mas de cada vez mais religiões, cada vez menos confessionais, cada vez menos fiéis, cada vez menos integrados em padrões comportamentais regulares e conformes a imperativos normativos gerais. Esta religiosidade crescentemente não religiosa (não assimilável a uma pertença coletiva comum) relativiza como caracterização inadequada o lema pós-moderno do regresso da religião, ao mesmo tempo que deslegitima irreversivelmente a tese modernista do desaparecimento da religião, exigindo fórmulas interpretativas radicalmente novas.

É revigorante, deste ponto de vista, a atitude construtiva e generosamente otimista do autor perante uma série de fenómenos que alguns observadores classificam desdenhosamente como mercadização do religioso, vendo-o reduzido a livre mercado de uma oferta diferenciada em que cada um pode adquirir o que quer, num dramático colapso da normatividade comum e da coesão social. Mais do que dissolver-se, para o autor a pertença redefine-se, adquirindo traços que escapam ao controlo institucional, mas podem ser muito fortes. O caso de Fátima e o seu êxito planetário como polo agregador de uma identidade devocional que se integra com a ratio eclesial sem se assimilar plenamente a ela, constitui deste ponto de vista um case study de extraordinário interesse, sobre o qual o autor se debruça com fineza simpatética e singular inteligência hermenêutica.

“O caso de Fátima como polo agregador de uma identidade que se integra com a ratio eclesial sem se assimilar plenamente a ela, constitui deste ponto de vista um case study sobre o qual o autor se debruça com fineza simpatética e singular inteligência hermenêutica.” Foto © António Marujo

O leitor, que chega ao fim do livro esclarecido sobre o ‘estado das coisas’ por este fresco tão nítido, completo e convincente, encontra-se, contudo, no limiar de um novo livro, ainda não escrito, que deve, urgentemente, ser escrito. Qual será a perspetiva construtiva abraçada pelo autor perante o quadro analítico proposto? Qual será a chave eclesiológica elaborada pelo teólogo perante a verificação sociológica da crise da paróquia como entidade territorial e a sua necessária reinvenção como espaço comum de polos comunitários diferentes? Como evitar que a persistência do religioso se traduza num dramático declínio do catolicismo, cujo traço constitutivo de eclesialidade sacramental (de pertença comunitária alimentada pela partilha da Eucaristia) se perde irremediavelmente na fragmentação individualística da fruição de serviços (litúrgicos, sociais, assistenciais, culturais, simbólicos)? Como reconstruir um tecido comunitário, essencial para a Igreja como para a sociedade, perante a desagregação progressiva induzida pela crescente tendência da sociedade à mediatização (a absorção dos processos de comunicação pelos seus canais de transmissão), liquidificação (a descompactação das identidades individuais, segundo a definição dada pelo autor) e terciarização (a redução das práticas sociais a serviços)?

Que o futuro da sociedade esteja inscrito no futuro da religião é convicção que este livro confirma e reforça, ao expor, tão brilhantemente, que não é da manutenção do passado que o futuro de ambas virá a ser gerado. 

 

(O registo vídeo da sessão de apresentação do livro pode ser visto aqui; Teresa Bartolomei é doutorada em Teoria da Literatura pela Universidade de Lisboa, investigadora do Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião da Universidade Católica Portuguesa https://ft.lisboa.ucp.pt/pt-pt/citer e professora convidada na Faculdade de Teologia da mesma UCP)

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